Comida feia x comida boa: pandemia muda hábitos alimentares dos brasileiros
Logo no início da quarentena, Marina Monaco, 29, recebeu uma mensagem de um amigo: "Me ensina fazer feijão?". Formada em gastronomia, Monaco ficou desempregada durante a pandemia e postou no Instagram o passo a passo de como cozinhar feijão para ajudar o amigo — e outras pessoas que estavam tendo dificuldade em se virar na cozinha de casa. Com 2 mil seguidores, Monaco conquistou mais de 15 mil em 100 dias de isolamento social e constatou: seu amigo não estava sozinho. Tem muita gente perdida na cozinha.
Além de perfis como o de Monaco, os sites tradicionais de gastronomia viram um aumento gigantesco de tráfego desde o início da pandemia. O portal de receitas do UOL teve crescimento de 230% da audiência em junho quando comparado a março. Já o canal do programa MasterChef do YouTube ganhou 129 mil novas inscrições durante o período de quarentena, com crescimento de de 51% nas visualizações, segundo a Endemol Shine Brasil, empresa responsável pelas redes do programa. O Canal do Jacquin, jurado do reality show, teve 10,8 milhões de visualizações, totalizando 743 mil horas de vídeo assistidas na quarentena.
No Google, o interesse pelo termo "receita" atingiu o maior nível de busca em abril deste ano. Uma das mais populares foi a receita de pão: caseiro, de queijo, de liquidificador, fofinho, doce, simples, recheado, de leite, de ló e integral. Em junho, nunca buscamos tanto por "cozinha" quanto antes. Entre os "como fazer" relacionados à comida, muita gente foi atrás de receitas de panqueca, pipoca doce, chocolate quente, molho branco, pudim, arroz e bolo de cenoura.
Os resultados finais de muitas dessas buscas vão parar em perfis como o Chefs da Quarentena, no Instagram, criado por seis amigas que trocavam fotos de desastres culinários. "Teve uma repercussão que a gente nem imaginava. Acho que as pessoas se identificaram, porque todo mundo erra e todo mundo está comendo em casa", conta Marcela, 42, uma das administradoras do perfil.
O que não falta na página são fotos de receitas de bolos e pipocas que não deram certo e acabam virando piada. "Tentei fazer a 'pipoca doce que dá certo', como estava escrito no site, e virou um bloco. Parecia um pé de moleque", conta Aline Silva Rocha, 36, veterinária. "Chamei de pepoca de moleque", brinca. As aventuras na cozinha de Rocha divertem as amigas nos grupos de WhatsApp. "Elas me pedem para fazer algumas coisas e, quando dá certo, comemoram com musiquinha de milagre. Comecei a inventar coisas diferentes e quase todas saíram errado", diverte-se.
Para Monaco, qualquer pessoa pode aprender a cozinhar e é por isso que ela mostra o passo a passo de tudo o que faz. "Posto o que eu vou comer e tenho certeza de que estou inspirando as pessoas, recebo muito feedback de gente dizendo que se sentiu à vontade para cozinhar e ousar na cozinha ao me ver fazendo", afirma. "As pessoas têm medo de errar, mas você aprende com o erro e cozinhar é isso. Acho que a pandemia está fazendo todo o mundo pensar mais no que está comendo e criar consciência alimentar", completa.
Olho no prato
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares feita pelo Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da Faculdade de Saúde Pública da USP, o consumo de alimentos ultraprocessados (industrializados) aumentou nos últimos 20 anos entre os brasileiros, mas houve uma desaceleração no crescimento, de acordo com os dados de 2018. Em janeiro deste ano, o grupo iniciou um estudo de segmento para entender a alimentação dos brasileiros. A cada três meses, os participantes devem responder a um questionário sobre o que comeram no dia anterior. O segundo questionário foi aplicado em abril, em plena pandemia.
"O que encontramos foi um aumento de consumo de alimentos frescos e in natura, como frutas, verduras, legumes e feijão, e uma estabilidade dos alimentos ultraprocessados, como chocolates e biscoitos", diz a Renata Levy, pesquisadora do núcleo e do departamento de Medicina Preventiva da USP. "O motivo exato não sabemos, mas especulamos que seja porque as pessoas têm mais tempo de cozinhar e não estão expostas aos ultraprocessados como ficam quando comem na rua. Pode também ter havido uma necessidade de olhar para alimentação por questões de saúde, as pessoas estão preocupada em manter o sistema imunológico fortalecido para ficar 'protegido' da Covid-19", afirma.
Doenças como diabetes, hipertensão e obesidade são fatores de risco para ocasionar quadros mais graves e até mortes por Covid-19. E são condições diretamente relacionadas à alimentação. "Mudar os hábitos alimentares é uma das coisas mais difíceis que existe, é um grande desafio para a saúde pública, exige muito esforço e é uma coisa muito enraizada", diz Levy.
Desde a publicação do Guia Alimentar Para a População Brasileira, feito pelo Ministério da Saúde e por pesquisadores do Nupens em 2014, a campanha pela "comida de verdade" entre chefs de cozinha foi incentivada com mais força. Na pandemia, ninguém consegue viver de delivery todos os dias, e, com os restaurantes fisicamente fechados, se intensificou um movimento de resgate do hábito de cozinhar e da cultura alimentar entre os brasileiros. Segundo Levy, há muitas pesquisas apontando o fator social como influenciador dos hábitos alimentares. "Nesse momento de isolamento é importante, propicia uma socialização dentro de casa, senta-se à mesa, conversa-se, há uma troca que resgata o cozinhar."
Em outras palavras, comer é uma atividade social, e que será afetada pela pandemia, como tantos outros rituais. Foi por causa da pandemia que o piloto Maurício Zupo, 28, também precisou encostar a barriguinha no fogão. "Gostava de fazer um prato ou outro de vez em quando, pratos que não eram comuns do dia a dia", conta. Depois que sua mãe foi diagnosticada com Covid-19, Zupo passou a pilotar as panelas ao invés de aviões, diariamente, com ajuda de receitas na internet e conselhos da mãe. "Nem sempre dá certo, mas, na maioria dos casos, saem coisas gostosas", afirma o piloto, que ficou mestre em canja de galinha. "A experiência é gostosa, ver que você consegue agradar na cozinha faz bem."
A formação alimentar é influenciada pelas experiências ao longo da vida, diz Carlos Alberto Doria, sociólogo. "Se alimentar é uma experiência cultural, e toda experiência cultural é social. Uma receita também é uma experiência cultural. A convivência em torno do fazer culinário vai afetar mais as pessoas", diz. Para ele, ir para a cozinha em plena pandemia pode também trazer uma sensação de segurança em meio ao caos: "Dá um sentido de produtividade você fazer seu próprio pão, você percebe que é capaz de se sustentar e de dar graça à vida, não se sente totalmente perdido."
Por isso, mesmo errando, a veterinária Aline Silva Rocha diz que não vai desistir. "Sei fazer o básico e estou cozinhando bem mais agora, acho que vou continuar depois da quarentena. Com o tempo, a gente começa a acertar mais o tempero das coisas e pega gosto", diz ela, que aprendeu a cozinhar "na marra" e hoje se diverte com as panelas.
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