'Perdemos grandes olhos na pandemia': isolamento tira fotógrafos de campo
Quando a enfermeira Mônica Calazans se tornou a primeira brasileira a ser vacinada contra a covid-19, dezenas de fotógrafos estavam presentes no Hospital das Clínicas, na zona oeste de São Paulo, em busca da foto perfeita para aquele momento histórico.
Entre eles estava Aloisio Mauricio, 47. "Já fui preso, ameaçado e me feri. Já levei bomba, spray de pimenta e apanhei da polícia, que fraturou a minha costela uma semana antes do meu casamento", conta o fotógrafo, morador de Osasco, na Grande São Paulo. "Juntando tudo isso, nem de perto é a tensão de se trabalhar numa pandemia. Era como se a gente estivesse pisando num campo minado."
Fotojornalista há 24 anos, Aloísio se enquadra no grupo de risco da covid-19 porque tem uma doença pulmonar de nascença, que já o deixou em coma três vezes ao longo da vida. Por isso, ele e a esposa Eliane Neves, 54, também fotojornalista, são cautelosos com os trabalhos. "A gente até diz que nós somos os loucos do álcool gel. O tempo todo de máscara, sabe? Tentando fazer o máximo possível", explica.
Enquanto viam muitos colegas retratando a pandemia através de imagens de cemitérios e hospitais, eles também escolhiam pautas que entendiam ser de menor risco, como coletivas de imprensa. Celebrações de casamento com noivos de máscara, missas vazias e imagens de grafites sobre a pandemia passaram a fazer parte do portfólio do casal.
Apesar dos cuidados, a mãe de Eliane faleceu, vítima da doença, em março. Na época, o casal também adoeceu, junto a outros familiares. Depois da recuperação e em meio ao luto, eles voltaram a trabalhar intensamente na cobertura da pandemia.
Testemunha real
As dificuldades de Aloísio e Elaine não são isoladas entre profissionais da área em que a principal atividade é estar nas ruas.
Os bastidores da rotina de trabalho de repórteres fotográficos nas periferias e os impactos causados pela pandemia inspiraram o documentário "Além do que se vê", do produtor audiovisual, Rafael Melo, 30, e do repórter fotográfico Warley Kenji, 35. Baseado nos trabalhos de Pedro Chavedar, Bruno Arib, Igor Smith, Mariana Acioli e André Lucas, o documentário foi selecionado para a Mostra CineBH Internacional Film Festival, de Belo Horizonte, e tem estreia prevista para 30 de agosto.
"Convidamos o telespectador a olhar a realidade aos olhos de fotojornalistas que arriscam suas vidas para registrar acontecimentos históricos no Brasil", descreve Rafael. "Estamos tentando mostrar o lado da testemunha real", acrescenta Warley.
Os fotógrafos enfrentam diferentes obstáculos. Durante três anos, Guilherme Rodrigues, 29, morador de Osasco, trabalhou como freelancer em agências de fotojornalismo e costumava cobrir jogos e treinos de futebol de times paulistas com frequência - entre eles, o Palmeiras, seu clube do coração.
A restrição do número de profissionais no estádio, contudo, barrou essa fonte de trabalho. Antes, as partidas contavam com cerca de 40 profissionais em campo. Com as restrições, esse número chegou a ser reduzido para cerca de 10. Assim, nem sempre era possível encontrar lugar entre os que podiam entrar nos estádios.
Enquanto os riscos aumentaram para garantir a cobertura de imagens da pandemia, a queda no preço das fotos já estava em processo antes dela, mas se agravou. "Pode vender uma foto a R$ 50 e pode vender uma foto a R$ 1,50. Só que a grande maioria das fotos não são R$ 50, infelizmente", diz Guilherme.
Custos como alimentação e transporte também saem do bolso do fotógrafo independentemente de vender ou não alguma foto, o que colaborou para que ele abandonasse a profissão. "Muitas pessoas como eu começaram a ponderar se realmente valia a pena sair de casa com o risco de pegar a doença", afirma ele, que atualmente cursa graduação em Marketing e trabalha com redes sociais.
Adicional de periculosidade
Presidente da Arfoc (Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Estado de São Paulo), Toni Pires relata cenários da precarização da categoria.
"Conheci um fotógrafo da Brasilândia [periferia na zona norte de São Paulo], que vendeu todo o equipamento para pagar aluguel. Com o preço do equipamento e o sucateamento do mercado, quando ele vai voltar a comprar um equipamento e se inserir no mercado de novo?", questiona. "Perdemos grandes olhos ao longo dessa pandemia."
Apesar da retomada total dos trabalhos estar cada vez mais próxima com a flexibilização das medidas de restrição, Toni aponta que ainda serão necessárias medidas de adaptação para o trabalho em eventos esportivos e casas de show, locais em que dificilmente há distanciamento social.
Uma das estratégias usadas pela fotógrafa Sabrina Silva, 24, moradora de Mogi das Cruzes (SP), para burlar os efeitos negativos da pandemia na renda familiar foi passar a fazer fotos de datas comemorativas, como aniversários e casamentos, em ensaios ao ar livre, usando os parques como estúdio nas fases de relaxamento das restrições.
Formada em fotografia e eventos, ela se tornou mãe pouco antes do início da pandemia, o que a fez redobrar os cuidados em casa. Ainda assim, foi preciso lidar com pessoas que queriam promover eventos com grande número de convidados. "Eu diria que a gente deveria cobrar [adicional de] periculosidade", enfatiza. "Tive que recusar eventos por medo, pela minha família", diz.
Com medidas restritivas na cidade, que provocaram o fechamento dos parques em vários momentos nos últimos meses, ela teve uma queda de cerca de 70% da sua renda. Mas, apesar do cenário desafiador, ela é otimista. "Acredito que é melhor pingar do que secar", diz. "Estou me adequando ainda ao novo normal."
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