Neto de Zé Kéti é motorista de app e mantém tradição dos bate-bolas no Rio
Um muro colorido no final da Rua Divinópolis em Oswaldo Cruz, bairro da zona norte do Rio, sinaliza que chegamos ao barracão de Wandré Santos Dias, 40.
No centro da pintura, que chama atenção de longe, a palavra Coreto indica o reduto de um grupo de bate-bolas que desde 2017 toma as ruas da região durante o Carnaval com suas roupas volumosas e coloridas e a famosa bola trançada na mão, batida com força no asfalto.
Wandré, além de ser um dos responsáveis pelo Coreto, é motorista de carro por aplicativo e neto de Zé Kéti (1921-1999), cantor e compositor de clássicos do samba. Enquanto o avô se eternizava através da música, o neto nutria a paixão pela tradição dos mascarados que tomam as ruas do subúrbio do Rio no Carnaval.
Wandré saiu de bate-bola pela primeira vez quando tinha seis anos. De lá para cá, já perdeu as contas de quantas vezes fantasiou-se durante a passagem por seis diferentes grupos de bate-bola.
Tamanha é a paixão pelas fantasias que, em 1999, chegou a transformar sua casa numa espécie de barracão para confecção das roupas de uma antiga turma da qual era integrante. A partir daí, buás (plumas), tintas e fitas passaram a ser coloridos frequentes no imóvel de dois andares, localizado em uma vila no bairro conhecido como berço da Portela.
Dezoito anos depois, Wandré e um amigo fundaram a turma do Coreto. Com um sorriso largo no rosto, o bate-bola mais velho do grupo mostrou ao TAB a casa tomada pelas fantasias.
"Falei para minha namorada não vir aqui para casa esses dias porque eu estava dormindo com um bate-bola [fantasia] do lado", contou aos risos.
Tímido, Wandré é o tipo de pessoa que fala com olhos. Emociona-se ao contar sua trajetória como bate-bola. Foi fantasiado que conheceu a mãe do seu filho, com quem foi casado por 23 anos. Orgulhoso, ele conta que a paixão pela tradição foi transmitida ao herdeiro, Wanderson Santos Dias, hoje com 20 anos.
"Quando ele era bebê, peguei o buá e comecei a mexer em cima dele. O menino ficou louco, ficou agitado. Ali já falei para mãe dele: 'olha, ele vai gostar de bate-bola", contou aos risos, ao lembrar que a ex-mulher não simpatiza com a fantasia.
Quem também não era muito fã da fantasia era o avô. Wandré foi o primeiro na família a inaugurar a era bate-bola. Mesmo assim, lembra com carinho da infância ao lado do sambista.
"O negócio dele era samba mesmo e ponto. O meu também. Gosto de samba, mas tenho uma paixão por bate-bola. Lembro do Natal, Ano Novo, e ele falando: 'vem dar um abraço no vovô'. Ele dava presente, nos dava dinheiro para fliperama. Tinha muito carinho pela família", diz, com a voz mansa.
Noite preparada em 12 meses
Após um ano de preparação, sábado (26) chegou — era o dia da saída da turma do Coreto em Oswaldo Cruz. Em 2022, o grupo contou apenas com 18 integrantes: quinze adultos e três crianças.
Formado na maior parte por jovens, a turma é selecionada para garantir um Carnaval tranquilo. São aceitos no máximo 25 integrantes para evitar confusões, problema histórico envolvendo bate-bolas no Rio.
O único momento em que Wandré deixa escapar o sorriso do rosto é ao comentar a briga entre algumas turmas. "A gente sai para se divertir, mas não sabemos quem está do outro lado. Nesse tempo todo, nunca nos envolvemos em confusão", garantiu à reportagem.
Wandré recebeu a equipe do TAB no fim da tarde de sábado com tinta pelo corpo, fiapos de buá pela roupa e resquícios de glitter. Na casa que divide espaço com o barracão, o bate-bola fez questão de explicar todo o processo de confecção da fantasia, que pode custa entre R$ 800 e R$ 1.200.
"A gente não ganha dinheiro com as fantasias. A gente faz para se divertir. É um processo muito trabalhoso. O grupo musical toca na rua e a gente organiza também os fogos que soltamos antes da saída. Fazemos ainda um churrasquinho", conta.
Com uma agulha e linha na mão, antes de o grupo tomar a rua Divinópolis, Wandré costurava todos os buás azuis nas máscaras. Um som com samba, pagode e funk animava o grupo empenhado nos ajustes finais nas fantasias que homenageiam este ano o "Trem do Samba" e Marquinhos de Oswaldo Cruz, sambista e integrante da Portela, que veio prestigiar o Coreto e a comunidade.
Na rua, por volta das 20h, o grupo musical contratado deu espaço para o sambista emocionar a vizinhança com clássicos do samba. "Não me lembro de ter recebido nenhuma homenagem melhor que essa", disse no microfone para todos os presentes.
Enquanto isso, feito político, Wandré cumprimentava e falava o tempo todo com amigos e vizinhos. Com cerveja na mão, estava entusiasmado com a presença do homenageado.
Foguetório na saída
Foi por volta das 23h30 que a turma do Coreto deixou a rua e entrou no barracão para se arrumar. A vizinhança já se aglomerava no portão da vila de Wandré para acompanhar a saída do grupo. Uma bandeira da turma esticada no portão dava um tom de suspense sobre a hora de saída. Era mais de meia-noite quando os fogos de artifício sinalizaram a hora certa de encontrar os mascarados.
As crianças foram as primeiras a sair e em seguida partiram os adultos correndo, com a bola na mão, fazendo barulho. Os mais novos da rua corriam para abraçá-los. Os mascarados que tinham em torno de 20 anos usavam ainda o mesmo tênis preto com a etiqueta da loja pendurada para fora.
"É para mostrar que é original e novo. Pros outros não ficarem falando que é falsificado e emprestado. Amanhã, a gente tira", explicou um deles, rindo, ao TAB.
A sensação de Wandré e do amigo Thiago Sohan Lima, outro fundador do grupo, era de dever cumprido.
"Só quem gosta sabe como é. Pra gente o importante é a saída, a hora dos fogos é emoção, é uma sensação de vitória, é uma conquista, pois você faz um projeto que começa no início do ano e chegar ao Carnaval com a fantasia concluída é muito emocionante. Muitas turmas começam e não conseguem terminar", explicava Wandré.
O sonho do neto de Zé Kéti é ainda organizar uma fantasia de bate-bolas em homenagem ao avô.
"Quero que a galera mais nova fique curiosa e pergunte: 'quem é esse aí na fantasia? E eu respondo: meu avô!'", especula ele, orgulhoso e animado com a possibilidade de contar a história de José Flores de Jesus, autor de clássicos como "Opinião", "Diz que Fui por Aí", "Acender Velas" e "Máscara Negra".
Bate-bola motorista
Além da paixão pelo bate-bola, Wandré também divide o coração com o amor pela profissão. Motorista de aplicativo desde 2014, o folião vara as madrugadas do Rio de Janeiro transportando passageiros durante a semana. Avaliado com cinco estrelas e mais de 7 mil corridas na conta, Wandré conta que foi por incentivo do pai, caminhoneiro, que começou a trabalhar com transporte.
Wandré circula na cidade das 19h às 7h da manhã. A única coisa capaz de interromper as corridas ou fazê-lo chegar mais cedo em casa é o preparativo para o Carnaval. Na sexta-feira (25), véspera da saída da Turma do Coreto, Wandré encurtou o tempo no volante e encerrou as corridas por volta de 3h.
"Preciso estar descansado para amanhã, ainda tem os ajustes finais na fantasia para fazer."
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