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Jovem ucraniano escapa de lutar na guerra e se abriga em orquestra da Bahia

Illia Danko, em frente da praia do Rio Vermelho, em Salvador - Victor Uchôa/UOL
Illia Danko, em frente da praia do Rio Vermelho, em Salvador Imagem: Victor Uchôa/UOL

Victor Uchôa

Colaboração para o TAB, de Salvador

01/06/2022 04h01

Parado em frente ao Atlântico, o jovem Illia Danko, que até poucos dias atrás não conhecia o mar, mira o horizonte e vislumbra uma batalha. Não se trata de metáfora. Em 24 de fevereiro, o músico de 18 anos foi despertado num alojamento universitário pelo barulho das bombas que caíam perto de Kiev, capital da Ucrânia. Agora, cerrando os olhos para lidar com o sol da Bahia, tenta encontrar o compasso dos seus novos dias. Cercado por incertezas, pela barreira do idioma e pela saudade da família, tem ao menos uma garantia: serão dias de música.

Portador de um visto humanitário, Illia conseguiu fugir do conflito provocado pela Rússia em seu país natal e acaba de se juntar aos Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), iniciativa que, desde 2007, utiliza a música para promover integração social.

"Estamos no século 21, ninguém da minha família acreditava que a Rússia seria capaz de nos invadir. Isso não fazia sentido, mas de repente se tornou realidade", diz Illia, cujos pais, professores, deixaram a cidade de Shostka, no centro ucraniano, para buscar abrigo no vilarejo onde o pai nasceu, se afastando do caminho dos blindados.

Mais afastado ainda está Illia, que estuda música desde os 8 anos, especialmente canto, sanfona e bandura, um instrumento de cordas típico da Ucrânia, tocado — mal comparando — de maneira semelhante à harpa. Aos 17, ele ingressou no Conservatório de Kiev e pretendia sair dali um músico profissional, até acordar em meio a uma guerra. "Sinto muita saudade de casa, dos meus pais, amigos e também do meu instrumento."

No contato inicial com a música brasileira, Illia Danko aprende primeiros acordes de 'Asa Branca' - Victor Uchôa/UOL - Victor Uchôa/UOL
No contato inicial com a música brasileira, Illia Danko aprende primeiros acordes de 'Asa Branca'
Imagem: Victor Uchôa/UOL

Aclimatação musical

Na falta da bandura de estimação, Illia vai, aos poucos, sendo apresentado a novos instrumentos, timbres e ritmos. Foi assim em seu primeiro contato com o Núcleo de Cordas Dedilhadas do Neojiba, onde foi recebido com um intensivão de música brasileira.

Na turma de cavaquinho, arriscou uma ou outra palhetada e, até então com expressões contidas, exibiu um sorriso largo quando o professor Paulo Victor Oliveira mandou ver no clássico choro "Brasileirinho", de Waldir Azevedo.

Em "Asa Branca", começou por sentir o poder do baião com palmas e uma batida no peito. Depois, arriscou-se no violão de base enquanto a aluna do Neojiba Zhaylla Góis, 16, fez as honras da casa no bandolim.

Nesse momento, o rosto do jovem desterrado, ainda preservando as espinhas da adolescência, parece ter se iluminado. "Bonito", resumiu, sem saber que o hino de Gonzagão e Humberto Teixeira fala de um pássaro que foge da terra ardente e devastada. Cá, pela seca. Se fosse lá, poderia ser pelas bombas.

Sem praticar há muito tempo, preferiu apenas acompanhar com olhos e ouvidos a turma de violão. Com um arranjo criado coletivamente, os adolescentes lhe receberam ao som de "Colher de Chá", frevo do baiano Osmar Macedo, mais famoso pela criação do trio elétrico ao lado do parceiro Dodô. Este inventou também a guitarra baiana, devidamente apresentada a Illia pelo coordenador do núcleo, Otávio Fidalgo.

Otávio Fidalgo, coordenador do núcleo de cordas dedilhadas, apresenta guitarra baiana a Illia Danko - Victor Uchôa/UOL - Victor Uchôa/UOL
Otávio Fidalgo, coordenador do núcleo de cordas dedilhadas, apresenta guitarra baiana a Illia Danko
Imagem: Victor Uchôa/UOL

Integração em coro

Ao tempo em que conhece a música da Bahia e do Brasil, o jovem exibe com orgulho marcas da sua origem. Enrolado nas cores azul e amarela da bandeira de seu país, faz questão de afirmar a identidade também no traje. Por dois dias seguidos, saiu com uma bata de bordados coloridos do tipo vyshyvanka, tradição ucraniana, feita pela bisavó.

Ainda não se sabe se Illia ficará mesmo com o grupo de cordas, pois depende de sua adaptação aos instrumentos — o Neojiba também analisa a viabilidade de encomendar uma bandura. Outra possibilidade de integração é através do Coro Juvenil, que ele conheceu na primeira visita à sede do grupo, no bairro de Salvador que leva o nome de Liberdade, berço do bloco afro Ilê Aiyê.

"Estou muito feliz de estar aqui e gostaria muito de cantar no coro", disse à turma, ouvindo um afinadíssimo "ooooohh" de meninos e meninas.

Posicionado entre os barítonos, Illia se guia então pelos colegas ao lado para tentar entoar uma palavra ou outra de "Luna de Xelaju", do compositor guatemalteco Paco Pérez. "Sempre estudei canto para acompanhar a bandura. Cantar no coro é diferente, mas quero muito ficar se for possível. Se der, quero participar de tudo", diz, rindo e fazendo rir a tradutora Volha Yermalayeva Franco.

Nascida em Belarus, país vizinho à Ucrânia, Volha vive há 11 anos em Salvador e, sem ela, a adaptação de Illia e de outras três musicistas ucranianas que fugiram da guerra e já estão no Neojiba seria bem mais complicada.

Ela tem dado aulas de português para o grupo e ajudado com questões burocráticas. Levou Illia, por exemplo, para fazer o cadastro no SUS e, assim, tomar a primeira dose da vacina contra a covid-19. Na Ucrânia, a imunização é voltada a maiores de 18 anos. O músico só completou essa idade em 9 de fevereiro, poucos dias antes de estourar a guerra.

Illia Danko conhece coro juvenil do Neojiba - Victor Uchôa/UOL - Victor Uchôa/UOL
Illia Danko, em aula com o coro juvenil do Neojiba
Imagem: Victor Uchôa/UOL

Odisseia de partida

O fato de ter chegado à maioridade à beira do conflito não é pouco relevante. No dia da invasão russa, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ordenou uma mobilização militar geral que, entre outras medidas, proíbe todos os cidadãos do sexo masculino de 18 a 60 anos de deixarem o país, estando assim disponíveis para irem ao front de batalha.

A única chance de Illia escapar seria se encaixar numa exceção à regra — no caso, provar que era um estudante com vaga certa em algum destino no exterior. É aí que entra o Neojiba.

Assim que começaram os bombardeios, o maestro fundador do grupo, Ricardo Castro, iniciou uma articulação com amigos e entidades parceiras, principalmente na Suíça e nos Estados Unidos, conseguindo doações para custear a iniciativa de, enquanto durar a guerra, receber na Bahia até dez músicos ucranianos com idades entre 16 e 28 anos. Até agora, a maior parte dos recursos veio da Maestro Foundation (EUA).

Com a ajuda da pianista russa Vasilisa Vshivkova, ex-aluna de Castro, a mensagem sobre a ação batizada de Neojiba Help Ukraine logo se espalhou entre músicos e musicistas da Ucrânia. Illia imediatamente mandou um e-mail, assim como fez com outras instituições musicais e universidades de diversos países. A primeira a responder foi Neojiba, e só então o rapaz se deu conta de se tratar de um grupo no Brasil. "Falei com meu pai e ele foi logo olhar no globo terrestre. Ficamos todos meio assustados com a distância", lembra.

Illia Danko acompanha ensaio da Orquestra 2 de Julho, principal formação do Neojiba, em Salvador - Victor Uchôa/UOL - Victor Uchôa/UOL
Illia Danko acompanha ensaio da Orquestra 2 de Julho, principal formação do Neojiba, em Salvador
Imagem: Victor Uchôa/UOL

Sobre o país onde agora vive, Illia pouco sabe. Nem mesmo o futebol, que sempre fez a fama brasileira mundo afora, é um tema que lhe interesse. "Tinha visto alguns documentários sobre o Carnaval e assisti à animação 'Rio'. Eram minhas referências do Brasil." Ainda assim, topou a aventura.

Com a carta de aceitação do Neojiba em mãos, o músico iniciou, sozinho, um périplo que durou mais de 40 dias. Nesse período, foram seis tentativas frustradas de deixar a Ucrânia por diferentes pontos da fronteira, tentando entrar na Polônia, na Eslováquia e na Romênia.

Como se estivesse preso num labirinto, foi barrado por motivos diversos: o documento do Neojiba precisava estar traduzido, depois faltava a dispensa oficial do serviço militar em tempos de guerra, depois não deixaram cruzar a fronteira a pé, depois faltava uma carteirinha de estudante para provar que ele estava saindo para estudar, depois argumentaram que a carta do Neojiba (traduzida) dizia que ele faria parte de um coro e não de uma escola — logo, não podia sair como estudante — e, por fim, na fronteira da Ucrânia com a Hungria, colocaram como condição para sua saída que ele tocasse um instrumento e provasse ser músico, mas não havia instrumento para tocar. Um vídeo no Youtube foi o que o resgatou da guerra.

Na beira do mar

Depois de voar da Hungria para o Brasil, com passagem já paga pelo Neojiba, Illia começou outra jornada. Sem vacina, teve que passar uns dias recluso antes de se juntar aos grupos da orquestra. Quando imaginava estar livre, uma virose desafinou seu intestino, deixando-o mais um tempo de molho.

Tudo isso só não o impediu de provar o acarajé, que diz ter gostado. E moqueca? "Ainda não comi, mas quero experimentar tudo", disse o rapaz, logo aconselhado a ir com cautela.

Illia se mostra impressionado com a forma amigável como tem sido recebido. "É diferente da Ucrânia, aqui as pessoas são mais expressivas. Até sorriem para um desconhecido", diz ele, acreditando que, mesmo com a dificuldade inicial provocada pelo idioma, vai conseguir se entrosar musicalmente. "Música é paixão, é uma coisa sem limites. Por isso que dizem que é universal. A gente se entende sem falar a mesma língua."

Illia, Vlada, Olesia e tradutora Volha, na sede no Neojiba - Victor Uchôa/UOL - Victor Uchôa/UOL
Da esq. para a dir.: Illia, Vladyslava, Olesia e tradutora Volha, na sede no Neojiba
Imagem: Victor Uchôa/UOL

"Há 15 anos salvamos vidas no Neojiba e isso ocorre cotidianamente. Esse intercâmbio certamente estimulará uma maior consciência e reflexão sobre o verdadeiro papel da prática artística em nossa sociedade. Esperamos também que os ucranianos possam adquirir conosco uma poderosa e necessária ferramenta de integração e paz social", observa Ricardo Castro.

O sonho de Illia, quando pequeno, era viver perto do mar. Agora, pode vê-lo todos os dias ao despertar — sem bombas — na casa que divide com as conterrâneas Olesia Matei (27, cantora lírica), Vladyslava Danyliuk (20, cantora lírica) e Mariia Sorokina (16, violinista).

Mas, assim como na poesia de Asa Branca, o que ele mais quer é voar para casa e, junto com a família, ajudar a reconstruir seu país. "Mas agora só quando a guerra acabar", diz, mirando o horizonte infinito. "Só espero que acabe logo."