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'Brasileiro é lixo': com 400 mil imigrantes, Portugal vê xenofobia crescer

Manuella se preparava para dormir quando ouviu o insulto vindo do prédio ao lado.

"Puta!"

Levantou-se da cama com a luz apagada e, pela janela, viu quando o homem gritou:

"Brasileiros são lixo! Mulheres brasileiras são putas!"

Ela se dirigiu até a sala e encontrou o marido fumando um cigarro na varanda enquanto testemunhava a mesma cena.

Escutaram o homem chamar brasileiras de "macacas" e "essas pretas".

Tiveram a impressão de que ele falava ao telefone e dirigia as ofensas a alguém do outro lado da linha. Eram dez da noite e vizinhos reclamaram do barulho. Então o homem fechou as janelas de casa e encerrou a gritaria.

O casal se recolheu ao quarto. Ela comentou: "Às vezes, é muito louco morar neste país".

O país é Portugal, onde a escritora pernambucana Manuella Bezerra de Melo, 40, o marido e um filho adolescente vivem desde 2017.

Eles moram na cidade de Guimarães, na região norte. Em seis anos, Manuella observou uma popularização do discurso de ódio contra os brasileiros. É uma constatação confirmada pelos números.

Entre 2017 e 2021, as denúncias de xenofobia contra brasileiros em Portugal cresceram 505%, segundo balanço da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial do país.

'Vou ficar chateando os portugueses com minha incômoda presença', ironiza a escritora pernambucana Manoella Bezerra de Melo
'Vou ficar chateando os portugueses com minha incômoda presença', ironiza a escritora pernambucana Manoella Bezerra de Melo Imagem: Fernando Donasci/UOL

De 4% a 8% da população

Nunca houve tantos brasileiros morando em Portugal quanto agora. Em um ano, o número de residentes legais aumentou 36%.

Dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras português divulgados em 20 de setembro indicam que são quase 400 mil — sem contar os que estão sem documentos e quem têm dupla cidadania.

Estimativas de estudiosos do fenômeno imigratório avaliam que o total de brasileiros que vivem em Portugal pode chegar ao dobro disso.

Portugal tem 10,4 milhões de habitantes — portanto, a depender da estimativa, os brasileiros representam entre 4% e 8% da população.

É um contingente para o qual o governo brasileiro diz estar atento. Em meados de outubro, o Ministério da Igualdade Racial do Brasil e o Observatório de Racismo e Xenofobia de Portugal, criado em março deste ano, devem assinar um memorando de entendimento para ações de combate ao preconceito.

A previsão é que a assinatura ocorra durante a Cúpula dos Povos Afrodescendentes, em Lisboa.

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Imagem: Arte/UOL

'Questão mais funda'

"Há quem insista em dizer que Portugal é tolerante, multicultural e que aqui não há racismo. Mas a verdade é que o país tem um problema estrutural de racismo e xenofobia", afirma Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório, que é ligado à Universidade Nova de Lisboa, onde Teresa é professora da Faculdade de Direito.

"Em meu entendimento, a criação do Observatório significa o reconhecimento do governo português de que os casos de racismo e xenofobia no país não são uma inconveniência, mas uma questão mais funda", diz ela.

Já a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares de Portugal, Ana Catarina Mendes, sustenta que o país "é aberto ao mundo" e "acolhe diversas pessoas que aqui querem viver".

'O governo cria mecanismos para os brasileiros permanecerem, mas não oferece caminhos para a busca de trabalho', diz o carioca Bruno Santos Dias, que cursa doutorado em Coimbra
'O governo cria mecanismos para os brasileiros permanecerem, mas não oferece caminhos para a busca de trabalho', diz o carioca Bruno Santos Dias, que cursa doutorado em Coimbra Imagem: Lucas Lima/UOL

Sem brasileiros nos espaços de poder

Se é verdade que há laços de amizade entre os dois países, a cordialidade não se reflete na integração dos brasileiros ao mercado de trabalho português.

Foi o que apontou, em novembro de 2022, o português Rodrigo Tavares, professor em Lisboa da Nova School of Business and Economics.

"São praticamente inexistentes os brasileiros, ou os portugueses de origem brasileira, que ocupam espaços de poder, seja em redes empresariais, na mídia ou no parlamento e governo", escreveu Tavares no artigo para a Folha de S.Paulo que viralizou em grupos de WhatsApp de estudantes brasileiros em Portugal.

Segundo revelou a mais recente edição do censo português, a faxina é a tarefa remunerada mais desempenhada pelos brasileiros que vivem no país.

A constatação de que Portugal é "um país que tem dificuldade em renovar as suas elites" — como afirmou Tavares no mesmo artigo — já levou estudantes brasileiros de doutorado a rever os planos de permanência no país. Muitos foram estudar em universidades portuguesas com a esperança de, findo o ciclo de estudos, serem contratados como professores.

Não são raros os casos de brasileiros que, ao revelar este plano para os orientadores, são ridicularizados.

"A academia tende a ser vanguarda. Mas, neste aspecto, aqui em Portugal, não é. No geral, não há espaço para professores estrangeiros", afirma o carioca Bruno Santos Dias, que cursa o doutorado em comunicação social na Universidade de Coimbra e estuda a imigração brasileira para o país.

Este é um dos motivos pelos quais, após defender a tese, ele decidiu não permanecer no país. "Não vejo possibilidade de me integrar aqui, a não ser em um trabalho em que minha formação não faça diferença, como em restaurantes ou fábricas", diz.

Para Dias, "o governo português cria mecanismos para os brasileiros permanecerem aqui" — ele se refere à concessão de vistos de residência — "mas não oferece caminhos para a busca de trabalho". Por mais escolarizados que sejam os imigrantes, aponta, a maioria não consegue emprego em suas áreas.

Dino, em visita ao país: governo brasileiro pediu 'ações enérgicas' contra a xenofobia crescente
Dino, em visita ao país: governo brasileiro pediu 'ações enérgicas' contra a xenofobia crescente Imagem: Divulgação/MJSP

Incidente diplomático

Casos de xenofobia se tornaram tão comuns em Portugal que só ocupam o noticiário em situações extremas.

Um exemplo foi o do engenheiro pernambucano Saulo Jucá, 51, espancado em uma cafeteria na cidade de Braga após ser reconhecido pelo sotaque. Ele teve nariz e costelas quebrados.

Ou da caixa com pedras colocada no hall da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, à disposição de quem quisesse jogá-las em "zucas" — diminutivo de "brazucas", forma pejorativa de se referir a brasileiros em Portugal.

Episódios como esses levaram o governo Lula a cobrar de Portugal "ações enérgicas" contra a xenofobia, nas palavras de Flávio Dino, ministro da Justiça, em visita recente ao país.

A cobrança ocorreu duas semanas depois de a Embaixada de Lisboa receber um email com ameaças de ataques a bomba aos "malditos brasileiros".

"Portugal é um país de brancos para brancos", lia-se na mensagem. "Negros, homossexuais e todos os estrangeiros, em particular os brasileiros, devem ser massacrados", prosseguia o email.

Procurado, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil não se pronunciou a respeito por se tratar de uma investigação de responsabilidade das autoridades portuguesas, que ainda não apresentaram a conclusão de suas diligências.

Os Consulados-Gerais do Brasil em Portugal (Faro, Lisboa e Porto) acompanham de perto todas as denúncias apresentadas por integrantes da comunidade brasileira naquele país e mantêm estreito contato com as autoridades portuguesas, que têm a responsabilidade de receber e investigar denúncias de casos de xenofobia ocorridos em Portugal Ministério das Relações Exteriores do Brasil

Além dos ministérios da Igualdade Racial, da Justiça e das Relações Exteriores, uma quarta pasta do governo Lula — dos Direitos Humanos e Cidadania — também cobrou de Portugal providências contra a xenofobia.

Em visita a Lisboa em abril, o ministro Silvio Almeida destacou, em reunião bilateral com representantes do governo português, "problemas acumulados de algumas práticas de xenofobia, problemas com a educação de tratamento e de diálogo" enfrentados por brasileiros.

'Realidade cruel'

Mestre em antropologia social e doutoranda numa universidade de Lisboa desde 2020, a alagoana Sergiana dos Santos é um exemplo da dificuldade de inserção do imigrante brasileiro no mercado de trabalho português.

Apesar de sua qualificação, Sergiana trabalha no call center de uma empresa. Ao chegar em Lisboa, em 2020, chegou a trabalhar como empregada doméstica.

"Não quero ser atendido por um brasileiro", "o que estás a fazer em meu país que já não volta para tua terra?" e "não percebo o que falas, por favor passe para alguém que conheça minha língua" são algumas das frases que ela ouviu recentemente, ao ter seu sotaque identificado por usuários no call center.

Com frequência, ao voltar para casa após um dia inteiro de ofensas, ela chora. "A realidade é cruel", afirma. Para cada pessoa gentil com quem trata ao telefone, Sergiana enfrenta alguém agressivo. Apesar disso, aos 44 anos, ela não pensa em retornar ao Brasil.

Nem Manuella Bezerra de Melo, que depois de ouvir o vizinho chamar brasileiras de "putas" e "macacas" precisou tomar um comprimido para dormir.

"Devemos ficar por aqui", afirma Manuella. "Já fiz minha vida no país e, além disso, quero ficar chateando os portugueses com minha incômoda presença", diz, brincando — mas não tanto.

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