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Brasileiros decidem voltar após maus-tratos a filhos em escolas de Portugal

Pais e mães brasileiros que se mudaram para Portugal para dar aos filhos educação de qualidade têm encontrado uma rotina de abusos verbais, violência física e maus-tratos nas escolas de lá.

As histórias reunidas nesta reportagem não são apenas registros de diferenças culturais. Envolvem crianças amarradas a cadeiras, professores ameaçando alunos com golpes de régua na cabeça e agressões entre estudantes, sem que a direção das escolas proteja os jovens.

Certas situações viraram casos de polícia, o que fez pais abandonarem tudo e voltarem ao Brasil.

Alguns brasileiros aceitaram dar nome e mostrar o rosto para o UOL —assista no vídeo abaixo a depoimentos de famílias que acabaram voltando. Mas, entre os que ainda vivem em Portugal, houve quem optasse por conceder entrevista em condição de anonimato.

Fuga de um pesadelo

Em maio de 2022, depois de ler uma carta, a carioca Cris Azen decidiu comprar, por impulso, quatro bilhetes Lisboa-Rio para dali a poucas horas.

Com a ajuda do marido, encheu quatro malas com o que tinha à vista. "Eu precisava fugir daquele pesadelo."

No dia seguinte, o casal e as duas filhas percorreram de carro alugado 360 km entre Braga e Lisboa e, dali, deram adeus a Portugal. Deixaram para trás um apartamento recém-comprado, móveis e roupas de inverno.

Desembarcaram no Rio no dia em que deveriam estar na CPCJ, sigla para Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, espécie de conselho tutelar português.

A carta que fizera Cris sair às pressas de Braga informava que a família seria investigada por supostamente colocar a filha de 9 anos em situação de risco. A depender do resultado, Cris poderia perder a guarda da criança.

Segundo ela, a denúncia foi feita por funcionários da escola onde a menina estudava - e da qual saiu após relatar ameaças de agressão física por outras alunas.

Em outra ocasião, a garota contou que quase fora punida pela professora com golpes de régua de ferro na cabeça. "A régua se chamava Ferrugem", diz Cris.

Por ter ido à escola tratar das ameaças contra a filha, o marido de Cris foi escoltado para fora do estabelecimento pela polícia.

O casal optou por tirá-la do estabelecimento e, ao comunicar a decisão à diretora, ouviu: "Cá não é o Brasil. A miúda tem de vir à aula amanhã ou vamos acionar a CPCJ".

Mesmo com os pais matriculando a menina em outra escola, a denúncia foi feita. "Eu tinha como me defender perante a CPCJ, mas não quis pagar para ver", diz a mãe.

Família de Cris Azen, em seu apartamento na Barra da Tijuca, no Rio. Eles decidiram voltar ao país após a filha sofrer ataques xenófobos numa escola de Portugal
Família de Cris Azen, em seu apartamento na Barra da Tijuca, no Rio. Eles decidiram voltar ao país após a filha sofrer ataques xenófobos numa escola de Portugal Imagem: Lucas Landau/UOL

Preso à cadeira

Nos últimos tempos, Álvaro Filho tem se perguntado se a maneira como a professora trata seu filho tem relação com o fato de ele ser brasileiro.

Quando o filho tinha 5 anos, a professora o amarrou à cadeira com fita adesiva para que ele parasse quieto. A criança tem diagnóstico de transtorno de déficit de atenção.

Hoje, aos 8, o garoto se queixa de ser tratado por "o aluno", ao passo que os demais são chamados pelo nome.

"No começo do ano letivo, meu filho enfrentou bullying de outro aluno. Mas a professora não se incomodou. O que a incomoda são a caligrafia e o português do Brasil", afirma.

"Não acho que seja apenas xenofobia", diz Álvaro Filho, que mora em Lisboa, "mas uma mistura de incapacidade com insensibilidade".

'Palmadas no rabo'

Mais de 75 mil alunos brasileiros estão matriculados em escolas públicas portuguesas — o número representa 5% do total de estudantes do país (do ensino infantil ao médio).

Em Portugal, a formalidade exige que alunos não tratem professores pelo nome, mas sim por "stor", no caso dos homens, e "stora", para mulheres — amálgama entre "senhor" e "doutor". Em algumas situações mais informais, eles aceitam ser tratados por "professor", seguido do nome.

A diferença geracional entre alunos e professores em Portugal é maior que no Brasil. Aqui, de acordo com o Ministério da Educação, docentes de escolas públicas têm, em média, 38 anos.

Por lá, a média de idade dos professores de crianças é de 55 anos, segundo dados da Direção-Geral de Educação. A maioria dos professores atua desde a época em que castigos físicos eram tolerados nas escolas.

Somente em 2007 o Código Penal português proibiu "maus-tratos físicos e psíquicos" contra crianças, após pressão de organismos internacionais.

Em 2003, a Organização Mundial Contra a Tortura havia denunciado Portugal ao Comitê de Direitos Sociais do Conselho da Europa por considerar que a lei portuguesa não protegia adequadamente as crianças "contra todas as formas de castigos corporais".

Em sua defesa, o governo português apresentou um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (que equivale ao STF brasileiro) de 1994, segundo o qual não havia nenhum preceito legal que permitisse palmadas em menores de idade.

Mas, em 2006, três juízes do mesmo tribunal inocentaram uma educadora que havia esbofeteado, amarrado no pé da cama e trancado em um quarto escuro uma criança com deficiência mental.

Na argumentação, lia-se: "Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo de um filho?", ou "não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?". "Fechar crianças em quartos é um castigo normal de um bom pai de família", escreveram os juízes.

A decisão levou o país a ser novamente denunciado às autoridades da União Europeia.

Ao UOL, Hélder Pais, diretor de serviços de desenvolvimento curricular da Direção-Geral de Educação portuguesa, afirma que a "maioria das escolas está preparada para fazer o acolhimento e a correta integração dos estrangeiros".

Segundo ele, castigos físicos não são "prática generalizada" que possa ser adotada com "alunos que eventualmente tenham comportamentos desviantes".

Ele afirma que há punições para funcionários e professoras que ajam assim, embora não "tenha números sobre essa situação em concreto".

'Formação miserável'

"Há uma tradição de violência nas escolas portuguesas", afirma o educador português José Pacheco. "É triste dizer isso, mas a formação do professor é miserável. Ela reproduz o modelo social escolar do século 19."

Em 1976, ele fundou a Escola da Ponte, no Porto, referência de educação transformadora para educadores brasileiros - entre eles, o escritor mineiro Rubem Alves.

Pacheco tem tido notícia de que, em outras escolas, a adaptação ao ambiente português é difícil para estudantes do Brasil.

"Tenho um filho que é professor no sul de Portugal. Ele disse que começa a haver um início de xenofobia contra brasileiros."

"Chegam notícias de violência física, mas como aprofundar? As crianças têm medo de falar e os professores dizem que é mentira", afirma Pacheco.

Escoltado pela polícia

O educador infantil Paulo Passos, de Brasília, tinha certeza de que a mudança para Portugal daria chance de os filhos terem uma educação de excelência.

"Foi uma decepção", afirma Paulo.

Logo nos primeiros dias de aula do sexto ano, o menino de 13 passou a ser perseguido por colegas. A irmã, de 15, testemunhou um dos ataques.

O pai decidiu ir à escola tratar do tema, mas temia que a falta de documentos pudesse lhe causar problemas.

A diretora informou que tomaria providências - no caso, convocar a polícia para ir até a escola, no dia seguinte, resolver a questão com os envolvidos.

Com medo, o garoto decidiu faltar à aula. "Então a polícia foi até minha casa buscá-lo", Paulo conta.

O menino foi intimado a acompanhar os policiais até a escola e, na quadra, diante de outros alunos, identificar os agressores. "O objetivo é amedrontar e colocar em evidência quem comete a violência", explica Paulo.

Depois desse dia, a situação do filho piorou. Ele conta que o menino ficou sem amigos e, por ser sempre repreendido pela professora pelo sotaque brasileiro, "parou de falar".

Depois de seis meses morando em Portugal, a filha de 15 anos decidiu voltar para o Brasil. O menino retornou após 1 ano. Paulo Passos continua no país.

Carlos Eduardo Mesquita, seu filho e a esposa Camila, no Rio. A família voltou ao Brasil após a criança sofrer um ataque xenófobo na escola, em Portugal
Carlos Eduardo Mesquita, seu filho e a esposa Camila, no Rio. A família voltou ao Brasil após a criança sofrer um ataque xenófobo na escola, em Portugal Imagem: Lucas Landau/UOL

Dedo na cara

Em dezembro de 2022, um garoto brasileiro de 11 anos morreu após cair da janela. A polícia tratou a morte como acidental, mas, na comunidade brasileira, levantou-se a suspeita de que fosse suicídio motivado por agressões na escola.

O boato levou o músico carioca Carlos Eduardo Mesquita a largar o emprego como técnico de telecomunicações e retornar ao Brasil com a família.

"Aquilo mexeu muito comigo", ele conta. "De que adiantava eu estar ganhando em euros se meu filho não estava feliz?".

Pouco antes, Carlos Eduardo diz ter escutado da diretora da escola do filho, em Braga, que o menino não deveria ficar incomodado ao ser tratado pelos colegas por "macaco", pois "há macacos brancos".

"Ela colocou o dedo na minha cara e disse que não era racismo", relata o músico.

"Meu filho chegava em casa chorando quase todos os dias. Apanhava, era chamado de preto, levava tapa na cara dos outros meninos".

"Para mim, Portugal acabou", ele diz.

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