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Sem provar origem, irmão de Alcolumbre 'perde' R$ 500 mil achados em malas

O motorista avista a blitz policial e dá marcha à ré em plena avenida Olavo Fontoura, perto do sambódromo do Anhembi, em São Paulo. Após perseguição, os PMs interceptam o Ford Fusion preto, e o condutor desembarca, jogando duas malas no chão.

Dentro delas, há exatos R$ 499.970. "Ele se entregou dizendo que não era ladrão", relata o sargento Fernando Mello. A explicação do motorista só aumenta a suspeita: segundo ele, o dinheiro pertence a empresários para financiar uma campanha política.

Estamos na madrugada de 25 de março de 2022 — a menos de sete meses das eleições. "Só não posso falar o partido, porque senão eu vou me complicar muito", tenta justificar o motorista.

Neste momento, um novo personagem entra em cena. Um homem — que dirige uma Fiat Strada branca — acena para o motorista suspeito, que revela aos PMs: "Foi esse aí que entregou o dinheiro para mim".

O homem que acena é o advogado Alberto Alcolumbre, 47, o Beto, irmão do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente da comissão mais importante do Senado, a CCJ (Constituição e Justiça).

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A origem do meio milhão de reais é até hoje um mistério. O dinheiro permanece apreendido.

Beto, advogado trabalhista que atua nos bastidores das campanhas do irmão senador, declarou-se dono das malas recheadas de dinheiro vivo e disse ter atravessado o país de carro com elas.

Segundo essa versão, ele saiu com as cédulas de Macapá, onde mora, e chegou a São Paulo após uma parada em Brasília — o advogado teria percorrido, portanto, mais de 3.000 km (cerca de três dias de viagem).

A Justiça negou em maio pela segunda vez a devolução da dinheirama porque sua origem não foi comprovada por Beto, segundo mostram documentos obtidos pelo UOL com exclusividade.

A investigação concluiu que:

  • O extrato da conta corrente de Beto não acusa saldo ou saque dos R$ 500 mil
  • A declaração de imposto de renda dele não é compatível com os valores apreendidos

"A declaração de imposto de renda [de Alberto Alcolumbre] registra rendimentos e patrimônio -- incluindo o ganho com a venda comprovada de um imóvel -- muito inferiores à quantia apreendida. A divisão patrimonial no seu divórcio não indica a mobilização do patrimônio", afirmou o promotor do caso, Marcello Penteado, em parecer à Justiça no processo sigiloso.

Beto diz que os R$ 500 mil são resultado de seu trabalho como advogado e de transações comerciais, como venda de carros. Ao UOL ele falou, em tom descontraído, sobre o uso de dinheiro vivo.

Eu costumo pagar em dinheiro [em espécie] as minhas contas. Quando eu tenho, eu pago em dinheiro. Quando eu não tenho, eu não pago.
Beto Alcolumbre

Ele disse no começo de dezembro que enviaria esclarecimentos por escrito, mas não atendeu mais à reportagem.

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Imagem: Arte/UOL e imagens: Reproducao/Instagram/@alberto.alcolumbre.adv, Reproducao/Campos Antonioli e Arquivo pessoal/Sérgio Arruda

O destino das malas

Segundo Beto, o dinheiro das malas pagaria um estudo jurídico para subsidiar investimentos dele na região amazônica. O destinatário era o advogado Philip Antonioli, sócio de dois escritórios que defendem empresários em São Paulo e em Brasília.

Foi Antonioli quem acionou Sérgio Barbosa Arruda, o motorista, para pegar as cédulas com Beto no Hotel Holiday Inn Anhembi, a 850 m de onde ocorreu a apreensão.

O suposto estudo jurídico seria uma análise de leis com vistas a investimentos em agronegócio em estados do Norte, como o Amapá, segundo relataram ao UOL pessoas próximas à investigação.

Philip Antonioli possui negócios nos mesmos ramo e estado, berço da família Alcolumbre. Com sede em Macapá, a Agropecuária Vale Verde foi aberta há cinco anos por Antonioli e dois advogados.

Tanto Antonioli como Beto refutam que tenham qualquer tipo de sociedade no empreendimento.

As dívidas de Beto Alcolumbre

Enquanto planejava gastar meio milhão com investimentos, Beto devia aproximadamente o mesmo valor em tributos federais. Hoje, a dívida é de R$ 544 mil, segundo a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Os débitos estão em cobrança. O site do órgão não informa detalhes das dívidas.

Enquanto era investigado em São Paulo, ele pagou uma das dívidas. Com isso, livrou-se do risco de a Justiça usar parte do dinheiro das malas para honrar o débito.

Beto é atualmente presidente da Junta Comercial do Amapá, cargo para o qual foi nomeado no começo do ano pelo governador do estado, Clécio Luís (SD), aliado da família Alcolumbre.

O papel de Beto nos bastidores das campanhas eleitorais de Davi Alcolumbre é dar retaguarda na área financeira, segundo relataram quatro fontes ouvidas pelo UOL.

O escritório de Beto, que advoga na área de direito trabalhista, também é discreto — está registrado em um sobrado sem placa no centro de Macapá, entre um botequim e a Igreja de Santo Antônio.

Beto tentou em 2014 uma cadeira pelo então DEM (atual União Brasil) na Câmara dos Deputados, mas não foi eleito. Já o irmão Davi chegou ao Senado naquele ano pelo mesmo partido. Desde então, seu poderio só cresceu. Ele foi presidente da Casa entre 2019 e 2021, época em que se tornou um dos principais articuladores do orçamento secreto. Agora Davi trabalha para voltar à Presidência do Senado.

Procurado sobre o caso das malas de dinheiro, Davi Alcolumbre preferiu não comentar. À época da apreensão, o senador disse que os valores eram referentes a trabalhos de advocacia do irmão.

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As mudanças de versão

Beto Alcolumbre relatou aos investigadores que transportou o dinheiro do Amapá até São Paulo. Mas, na hora da apreensão das malas, afirmou ter pegado as cédulas na capital paulista.

"O segundo condutor [Beto Alcolumbre] disse que era advogado e que o dinheiro era de honorários de uma ação, que veio [a SP] pegar esse dinheiro e entregar o dinheiro para o motorista [Arruda]", disse o PM Fernando Mello, à época da apreensão. "Perguntamos onde ele pegou o dinheiro, ele disse que não poderia falar. 'Eu não preciso falar'."

A versão dos fatos narrada pelo motorista também sofreu mudanças.

Segundo os policiais [militares], Arruda alegou informalmente ter sido contratado por um advogado representante de empresários que financiam campanhas políticas para receber as bolsas que continham o dinheiro.
Marcello Penteado, promotor do MP-SP

Mais tarde, em depoimento à Polícia Civil, o motorista negou que o dinheiro fosse para campanhas eleitorais e o atribuiu a honorários advocatícios, em linha com a versão de Alberto Alcolumbre.

O caso foi parar na Justiça Eleitoral em razão da suspeita de caixa dois. Lá, Beto apresentou um contrato relativo ao estudo jurídico, e a procuradoria descartou crime eleitoral.

Esse contrato previa que os R$ 500 mil seriam pagos em duas parcelas, mas o valor total contido nas malas havia sido entregue de uma vez, antes sequer de o estudo ser iniciado. Beto alegou ter requisitado uma alteração contratual: que toda a despesa fosse paga em dinheiro vivo porque sua conta estava sob bloqueio judicial em razão das dívidas. Mas essa mudança no contrato tampouco foi apresentada.

Para o promotor, o contrato poderia explicar "o destino da altíssima quantia, mas não a origem". Ele considerou contraditória a explicação dada para o uso de dinheiro vivo. Primeiramente, Beto disse que isso era comum no Amapá. Depois, adotou a versão de que sua conta estava bloqueada.

Não restou comprovada a procedência e a propriedade do dinheiro apreendido.
Thaís Fortunato Bim, juíza do Departamento de Inquéritos da Justiça de SP

Por outro lado, como não chegou à origem do dinheiro, a investigação não aponta crime.

Se de um lado, não se comprovou à saciedade a procedência e o destino do quase meio milhão de reais em espécie, de outro, tampouco se positivou que a quantia seja de origem espúria.
Marcello Penteado, promotor

O inquérito foi então arquivado sob sigilo total, e a Justiça mantém desde então o dinheiro apreendido.

Se não mais reclamados e sem ter a origem comprovada, os valores passarão para os cofres do estado de São Paulo, segundo o Código Penal.

Pagar com dinheiro vivo é crime?

Não é crime transportar altas somas de dinheiro vivo, tampouco usar essa forma de pagamento.

No entanto, a transação é atípica e considerada suspeita. Por isso, a necessidade da apreensão dos valores e investigação, que pode revelar crimes correlatos, entre eles, desvio de dinheiro público, lavagem de capitais e sonegação fiscal, segundo explicaram ao UOL servidores da Receita e da Polícia Federal.

Esse tipo de transação também precisa ser obrigatoriamente registrado na declaração de Imposto de Renda dos envolvidos sob o risco de até responderem por crime de sonegação.

Em caso de apreensão de dinheiro, o proprietário deve declarar os valores à Receita. Se não o fizer, responderá por omissão de rendimentos, irregularidade tributária sujeita a multa.

Procurado, Beto não respondeu se declarou as duas malas ao Fisco.

O advogado Philip Antonioli, ouvido na investigação como testemunha, não quis explicar por que concordou em receber o pagamento em dinheiro vivo.

"O caso em questão tramitou sob segredo de justiça e foi arquivado devido à falta de elementos para dar sequência à investigação da autoridade policial", diz a nota encaminhada pelo escritório dele.

O motorista Sérgio Arruda também se recusou a dar entrevista. "Eu não tenho interesse em tocar nisso. Foi bem traumático para mim."

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