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'Estão brincando de nos matar': o que é viver na Venezuela sob Maduro

Pernilongos grandes "como moscas" não deixam as crianças dormirem. Os insetos picam os quatro filhos que Carolina Leal adotou sem documentação legal e que dormem na sua casa, doada à fundação que sustenta há 23 anos.

Sem eletricidade, sem ar-condicionado nem ventiladores — os que havia foram danificados pelos contínuos apagões —, todos sentem falta de ar.

Dois dos meninos têm síndrome de Down e, sem entender o que está acontecendo, aflitos pela onda de calor que chegou a Maracaibo, caminham a esmo pela casa onde moram.

"Estão nos queimando vivos. Estão brincando de nos matar lentamente", diz a ativista social.

A situação de Carolina é um reflexo da crise econômica que avançou na última década e espalhou fome e precariedade pela Venezuela.

O quadro é dramático. Todos os dias a fundação criada por ela alimenta 130 crianças e adolescentes, com uma doação de US$ 1.500 em comida recebida mensalmente de um venezuelano anônimo que vive nos Estados Unidos.

O doador transfere o dinheiro a um supermercado da cidade, para que quatro mulheres da fundação façam compras. "Não sabemos quem é, mas é um anjo."

No início de março, devido aos frequentes cortes de energia elétrica, 17 frangos doados a elas estragaram, lamenta Leal.

"As crianças estão todas picadas de pernilongos, com febre, dor de cabeça, conjuntivite, e o dinheiro das doações já não dá para comprar comida para todos."

Clientes esperam na fila para comprar pescados em Caracas
Clientes esperam na fila para comprar pescados em Caracas Imagem: Andrea Hernandez Briceno/UOL

Do petrodólar à miséria

A Fundação Alimentando Sonhos, criada por Carolina Leal, atua numa das cidades venezuelanas mais afetadas pela crise humanitária do país.

Maracaibo é a cidade mais populosa da Venezuela depois de Caracas, com 2,4 milhões de habitantes. A cidade viveu a época de ouro da produção de petróleo na Venezuela, mas foi arrastada para a crise com a morte do então presidente Hugo Chávez, em 2013, e a ascensão de Nicolás Maduro ao poder.

Em 2023, Maracaibo registrava 72% da população em extrema pobreza (vivendo com o equivalente a R$ 50 por mês), segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida, realizada pela universidade Andrés Bello, divulgada em março deste ano.

Ao menos 66% da população da cidade disse ter passado fome alguma vez.

Em nível nacional, o resultado não é muito diferente. A amostragem de 12.683 lares revelou uma taxa de pobreza de 82,8%, sendo 50,5% em extrema pobreza.

Diante da falta de estatísticas oficiais, a pesquisa da universidade Andrés Bello tornou-se referência.

Essa ausência de dados se estende a todas as áreas e dificulta até precisar o total de habitantes hoje no país, após o grande êxodo iniciado em 2015.

O número mais aceito é de 28 milhões, mas há registros variando entre 26 milhões e 33 milhões.

A retração econômica — os Estados Unidos impõem sanções desde 2015 —, a hiperinflação descontrolada até 2022, assim como a perseguição a opositores políticos e a falta de perspectivas, desmantelaram o país.

Ao menos 7,7 milhões de pessoas deixaram a Venezuela em busca de proteção e de uma vida melhor, segundo a Acnur (Agência das Nações Unidas para os Refugiados), a partir de 2015.

Até abril de 2023, o Brasil registrou a entrada de 903.279 venezuelanos, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Desses, 560 mil ficaram no país como refugiados. Os demais seguiram para outros destinos.

A fome tem sido uma baliza na tomada de decisões dos venezuelanos, como Carolina Leal. Entre 2019 e 2021, sete pessoas da sua comunidade morreram de fome — na maioria, crianças. Esse momento de dor foi também o de ruptura para que ela deixasse de apoiar o governo de Nicolás Maduro "e a Revolução".

"Por isso não me canso de ajudar estes meninos."

Carolina Leal apoiava o chavismo, mas a crise humanitária a fez mudar de ideia sobre o regime. Hoje ela está à frente da ONG Alimentando Sonhos, que distribui comida a jovens de Maracaibo
Carolina Leal apoiava o chavismo, mas a crise humanitária a fez mudar de ideia sobre o regime. Hoje ela está à frente da ONG Alimentando Sonhos, que distribui comida a jovens de Maracaibo Imagem: Henry Chirinos/UOL

269 presos políticos

As violações dos direitos humanos, um tema caro a Lula e ao PT, têm sido uma constante no país.

Quando o presidente Barack Obama declarou as sanções contra a Venezuela, citou a prisão de opositores de Maduro como justificativa. De lá para cá, o quadro piorou.

Até 8 de abril de 2024, havia 269 casos documentados de presos políticos na Venezuela, segundo o Foro Penal, associação formada por advogados que prestam assistência jurídica a detidos. Destes, 20 são mulheres, 147 são militares e 131 estão à espera de alguma sentença.

Uma delas é Emirlendris Benítez, comerciante e mãe de dois filhos, detida sem provas desde 5 de agosto de 2018.

Ela é acusada de participar de um ataque com drones contra o presidente Nicolás Maduro. Foi condenada e cumpre pena de 30 anos de prisão no Instituto Nacional de Orientação à Mulher Los Teques, com presidiárias comuns, em Caracas.

A Anistia Internacional fez um apelo para que ela fosse libertada. "(...) Foi submetida a torturas e outros maus-tratos enquanto estava grávida. Poucas semanas após a sua detenção, ela foi transferida à força para um centro médico, onde a sua gravidez foi interrompida sem o seu conhecimento ou consentimento", afirmou a ONG.

Sua defesa recorreu da sentença, pois não foram apresentadas provas incriminatórias.

"Os funcionários que a detiveram explicaram três vezes ao juiz que não tinham encontrado nenhuma evidência criminosa no veículo [de Emirlendris]. Também não havia mandado de prisão", disse ao UOL um parente que não quis se identificar por medo de retaliação.

Devido à tortura e à falta de atendimento médico, Emirlendris Benítez sofre de fibromialgia, tem duas hérnias na coluna e não consegue andar. Ela precisa usar cadeira de rodas.

Sua filha mais velha havia saído do país antes da prisão da mãe. Seu filho, aos cuidados da avó materna, não a vê há três anos. Ele não sabe que a mãe está detida.

Abanada por uma de suas filhas, Reina Molero, 45, tem ostiosarcoma no fêmur. Seu bairro, Santa Rosa de Agua, em Maracaibo, fica diariamente de três a seis horas sem energia elétrica
Abanada por uma de suas filhas, Reina Molero, 45, tem ostiosarcoma no fêmur. Seu bairro, Santa Rosa de Agua, em Maracaibo, fica diariamente de três a seis horas sem energia elétrica Imagem: Henry Chirinos/UOL

Venezuela 'aos remendos'

Quem vive na Venezuela hoje se equilibra entre a escassez e a desigualdade. Há falhas constantes no fornecimento de eletricidade, mas a gravidade varia conforme as desigualdades geográficas.

Enquanto na Grande Caracas há cortes esporádicos, algumas cidades passam entre 8 e 12 horas sem luz.

A presidente da Federação da Indústria e Varejo do estado de Carabobo, Ana Isabel Taboada, cobrou investimentos no Sistema Elétrico Nacional para que a indústria do país tenha fornecimento ininterrupto.

"Se não temos eletricidade por 4 ou 6 horas seguidas, não podemos produzir. E, com pouca produção, os preços aumentam", explicou ela durante uma entrevista à Unión Radio.

Com 84% da população da Venezuela vivendo do trabalho informal (dados da Universidade Andrés Bello de 2021), muitos profissionais se viram com trabalho remoto.

Programadores, professores, jornalistas, administradores, comerciantes e até profissionais de saúde atuam online. Driblam os cortes de luz com baterias extras.

Juan Romero, 57, tira água de um poço no centro da cidade de Macaraibo.Ele enche tambores para levar a bairros onde o serviço é intermitente
Juan Romero, 57, tira água de um poço no centro da cidade de Macaraibo.Ele enche tambores para levar a bairros onde o serviço é intermitente Imagem: Henry Chirinos/UOL

Água uma vez por semana -- ou por mês

María Alexandra Semprún, cientista política e antropóloga, conta que no bairro de classe média onde mora, em Maracaibo, também há escassez de água, cujo fornecimento foi cortado em novembro de 2023, segundo ela.

"Todo mês compramos um caminhão-tanque por US$ 30 [em Caracas custa US$ 65] com o qual enchemos a caixa-d'água de nossa casa. Rende porque somos duas pessoas. Onde moram seis, é preciso comprar dois caminhões-tanque por mês."

Isso levou ao crescimento do negócio de caminhões-tanque que, embora utilizem água gratuita das companhias estaduais ou municipais de água, cobram pelo transporte até a casa das pessoas.

Na capital, Caracas, a água é escassa e chega com maior ou menor volume, dependendo do bairro.

Na zona oeste da cidade não falta, mas nas zonas norte, leste e sudeste há racionamento programado e, com sorte, a água chega pelas tubulações um ou dois dias por semana.

Em algumas áreas do estado de La Guaira, a 20 minutos da capital, a água é fornecida uma vez por mês.

"Quando chega, racionam por três dias, até cortarem", diz Yasmín Bigott.

A maioria da população utiliza tanques, com bombas instaladas no interior dos apartamentos ou nos telhados das casas. É comum manter caixas d'água em banheiros, cozinhas e lavanderias.

Em algumas regiões, os moradores dividem custos para explorar poços naturais de água subterrânea. A medida tem sido questionada por ambientalistas, mas continua fazendo parte das soluções peculiares que os venezuelanos procuram para resolver o seu dia a dia.

A economia venezuelana funciona "em remendos", diz Semprún. "As pessoas vivem do rendimento mensal, mais o bônus que o governo lhes dá, as remessas de fora, o trabalho informal, mais a tigela de sopa que o vizinho lhes oferece. Todos nós temos vários empregos, isso não se vê no Brasil."

Em Caracas, os irmãos Miguel (11), Shaul (8) e Gregory García (5) têm aulas particulares porque, nas escolas públicas da Venezuela, aulas só acontecem dois ou três dias por semana
Em Caracas, os irmãos Miguel (11), Shaul (8) e Gregory García (5) têm aulas particulares porque, nas escolas públicas da Venezuela, aulas só acontecem dois ou três dias por semana Imagem: Andrea Hernandez Briceno/UOL

Aulas dois dias da semana

A educação também sofre os efeitos dessa economia "remendada". Há dois anos nas escolas públicas de todo o país funciona o "horário em mosaico".

Trata-se de uma redução da jornada implementada por professores, sindicatos e federações. Desta forma, os educadores procuram também driblar sua situação financeira precária.

O salário evapora com a inflação. Um professor recebe por mês entre 7 e 15 dólares, dependendo da formação e tempo de casa.

O professor universitário César Pinzones ilustra esse quadro. Embora o custo de vida seja subsidiado na Venezuela, e o preço de alimentos e bens, menor. Pinzones ganha 540 bolívares por mês, ou US$ 15 (cerca de R$ 75) pelo seu trabalho como professor da sexta série fundamental numa escola em El Morro de Petare, maior bairro da Venezuela, em Caracas.

Pinzones, que dá aulas há 31 anos, caminha uma hora para ir e voltar das aulas. Foi o modo que encontrou para economizar.

O professor Cesar Pinzones, 53, durante sua caminhada de uma hora até a escola pública onde leciona, no bairro Morro de Petare, Caracas
O professor Cesar Pinzones, 53, durante sua caminhada de uma hora até a escola pública onde leciona, no bairro Morro de Petare, Caracas Imagem: Andrea Hernandez Biceno/UOL

"Damos dois dias de aula semanais. A diretora da escola propôs ampliarmos para três dias, e nós aceitamos. Mas há um medo constante de que os professores saiam, porque a diferença entre o que se paga numa escola privada e numa pública é cada vez maior", explica.

Pinzones ganha US$ 80 por mês por aulas em uma escola particular. Além disso, atua como professor em uma universidade particular. "Há dias em que trabalho das 7h às 20h."

Devido ao "horário mosaico", os alunos frequentam menos a escola, dependendo da região e dos acordos. Esta é outra carência que as pessoas tentam cobrir por conta própria. Alguns pais pagam professores particulares durante os dias em que não há aulas regulares.

É o caso de Yelis Arias Gómez, uma profissional de limpeza que paga 4 dólares por dia a uma professora aposentada para ensinar seus três filhos: três horas por dia durante três tardes semanais, a professora dá aulas diferentes segundo a série de cada um.

O mais grave é o que aponta o professor César Pinzones. "Temos nos concentrado nas áreas básicas, de língua espanhola e matemática. Matérias mais específicas são dadas apenas em escolas particulares. Assim, as lacunas entre ensino privado e público aumentam."

As crianças atendidas pela fundação de Carolina Leal em Maracaibo nem vão à escola.

"Somos 6 pessoas dando aula aos meninos, embora não tenhamos formação pedagógica. Temos crianças que deveriam estar na 3ª série e não sabem ler", diz Leal.

Crianças brincam no celular com a casa às escuras no bairro de Petare, em Caracas
Crianças brincam no celular com a casa às escuras no bairro de Petare, em Caracas Imagem: Andrea Hernandez Briceño/UOL

Lula e o malabarismo político

Diante desse cenário precário e sob uma nova promessa de eleições limpas, a Venezuela vai às urnas no próximo dia 28 de julho.

"Vamos votar nem que coloquem uma 'cucaracha' [barata] como candidata, mas temos que mudar o governo Maduro", afirma Carolina Leal.

María Corina Machado e Henrique Capriles, principais nomes da oposição, seriam as alternativas na próxima eleição, mas seus nomes não estarão nas cédulas.

A Corte Suprema do país, controlada pelo governo, declarou ambos inelegíveis por 15 anos.

Esse alinhamento do Judiciário local ao chavismo remonta a 2003, quando Chávez ampliou o número de ministros de 20 para 32 — todos os novos nomes eram favoráveis ao governo.

A partir dali, projetos de Chávez e, depois, do seu sucessor, passaram a ser validados sem dificuldades pelo Supremo do país.

O presidente Lula, aliado de Maduro, vinha se mantendo alheio à crise do país vizinho.

"A gente não pode já começar a jogar dúvida antes de as eleições acontecerem. Temos que garantir a presunção de inocência até que haja as eleições", afirmou o petista em 6 de março.

O silêncio só foi quebrado um dia após o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela negar a inscrição da filósofa Corina Yoris como candidata. Ela substituiria María Corina Machado como cabeça de chapa, mas acabou barrada.

O Itamaraty emitiu um comunicado expressando preocupação com o pleito na Venezuela.

"Com base nas informações disponíveis, observa que a candidata indicada pela Plataforma Unitaria [Corina Yoris], força política de oposição (...), foi impedida de registrar-se, o que não é compatível com os acordos de Barbados", dizia trecho da nota, que cobrou explicações de Maduro.

A Venezuela repudiou o pronunciamento oficial do Brasil. Classificou-o como intervencionista, nebuloso e que parecia "ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos".

Lula desembarca em Bogotá nesta semana. Lá, deve discutir com o presidente colombiano, Gustavo Petro, temas como a eleição no país vizinho.

Tradução: Carla Jimenez

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