Enquanto a Igreja Mundial do Poder de Deus era cobrada na Justiça por quase dois anos de aluguel de um templo em Cotia (SP), seu fundador, Valdemiro Santiago, gastava R$ 12 milhões em um avião particular.
O episódio ocorreu em 2018, mas continua simbólico.
A Mundial vive sua pior crise, com dívidas e diversos processos.
Levantamento inédito feito pelo UOL revela que a igreja é alvo de ao menos 686 ações de cobrança, só no estado de São Paulo.
Quase todas são por calote no aluguel de templos.
Nos processos analisados, ao menos nove juízes enxergam indícios de confusão entre os bens de Santiago e os da igreja, uma das maiores do país.
Uma situação se repete em dezenas de casos: diante da dificuldade de receber os valores determinados pela Justiça, os credores pedem a inclusão do nome de Valdemiro no processo.
Após o apóstolo ser citado, a Igreja faz acordos e paga o que deve.
Em sua defesa, Valdemiro diz não ter mais ligação com a administração da Mundial, já que não é mais presidente da denominação.
Ele se apresenta apenas como fundador e diz "prestar serviços espirituais de pregação em alguns cultos da entidade". A presidência é ocupada hoje pelo bispo paraense Roberto Santana da Silva.
É irretorquível [incontestável] a confusão decorrente da ausência de separação de fato entre os patrimônios.
Guilherme Ferreira da Cruz desembargador, em janeiro de 2023
Tudo leva a crer que a executada [a Igreja] oculta seu patrimônio na pessoa do réu [Valdemiro], dificultando a satisfação do credor.
Armando da Silva Júnior juiz em decisão de agosto de 2022
Valdemiro foi procurado pelo UOL para comentar o caso, mas não respondeu.
Após a publicação desta reportagem, seu advogado, Dennis Munhoz, enviou uma nota afirmando que todos os rendimentos do apóstolo vem da participação em empresas e do pagamento pelo trabalho de pastor, vendas de livros, CDs, DVDs e das redes sociais.
"O patrimônio pessoal do apóstolo foi construído há quase 20 anos, em nada se relacionando com dízimos", afirma Munhoz (leia mais ao final deste texto).
Nos processos, Valdemiro afirma não haver confusão entre seu patrimônio e o da Igreja e frisa que a entidade não cometeu ato fraudulento ou ilícito.
Quebra de sigilo
O sigilo bancário de Valdemiro foi quebrado em 2021 para verificar se bens e recursos da igreja e do apóstolo se misturavam. A decisão foi assinada pela juíza Mônica Di Stasi.
A Igreja pagou a dívida de cerca de R$ 55 mil antes de a medida ser concretizada, e o processo foi declarado extinto.
Situação semelhante ocorreu em agosto de 2021, em outro processo no qual uma idosa cobrava, desde 2018, o pagamento de uma dívida de aluguel da Mundial.
A instituição fez um acordo com a credora e pagou a dívida, calculada em R$ 360,5 mil, três dias após o juiz Mário Velloso determinar que Valdemiro fosse incluído na cobrança, o que poderia levar à penhora de suas contas bancárias.
"Vê-se que a Igreja e Valdemiro só correram para firmar acordo após sua condição de sócio ter sido declarada judicialmente", escreveu o juiz em despacho, ressaltando que, por diversas vezes, a Justiça não havia encontrado recursos nas contas da instituição.
Seis empresas e fortuna em família
O histórico dos processos analisados mostra que a crise se agravou em 2020, quando a igreja teve de fechar as portas devido à pandemia.
Mesmo assim, o salário líquido mensal de Valdemiro naquele ano foi de R$ 100 mil.
Documentos anexados em diversas ações judiciais mostram que o apóstolo encerrou o primeiro ano da pandemia com patrimônio de R$ 21 milhões.
Lista de 2020 feita pelo Ministério Público Federal coloca Valdemiro como proprietário de três lanchas (com os nomes de "Pregador", "Arara" e "Franciléia"), uma escuna, uma moto aquática e três botes, entre outros bens.
O pastor também possui bens em nome de suas empresas.
O avião de R$ 12 milhões, que pertenceu ao cantor Amado Batista, foi comprado pela Intertevê Serviços Ltda., da qual é sócio com a esposa, a bispa Franciléia de Oliveira.
Valdemiro é ou já foi proprietário ou sócio de seis empresas, mais quatro filiais.
A ligação é direta, com o pastor sendo representante legal, ou indireta, nos casos em que uma de suas empresas faz parte da sociedade.
Figuram nas sociedades sua esposa e uma de suas filhas, Raquel Santiago.
As empresas atuam em produção televisiva e musical, táxi aéreo e locação de aeronaves. Todas estão ativas, menos a de táxi aéreo, com status de "inapta" na Receita Federal por ter alguma irregularidade pendente.
Uma filial está registrada como fazenda de criação de gado em Mato Grosso. Foi comprada em 2011 por R$ 30 milhões (cerca de R$ 72 milhões corrigidos), segundo o Ministério Público Federal.
Valdemiro também faz dinheiro com os vídeos em seu canal no YouTube, Apóstolo Valdemiro Oficial, criado em 2015.
Com 1 milhão de inscritos, seus 1.200 vídeos publicados receberam quase 56 milhões de visualizações.
Segundo o site SocialBlade, que analisa mídias sociais, ele poderia receber até R$ 100 mil por ano monetizando o canal.
À Justiça a defesa de Valdemiro afirma que todos os valores recebidos da Mundial se referem à "prebenda" (salário de pastores e padres pela atividade religiosa), além de direitos autorais por seus livros, CDs e DVDs.
Mansão no litoral
Um exemplo da confusão entre os patrimônios da igreja e do apóstolo foi apontado pela Prefeitura de Ilhabela, no litoral de São Paulo, em uma ação judicial por não pagamento de IPTU no valor de R$ 349 mil.
O processo foi aberto em 2015 contra o então proprietário do imóvel.
Seis anos depois, a administração pública concluiu que a Mundial havia adquirido a mansão.
A casa tem 3.000 m² e já funcionou como resort de luxo.
Na ação, o procurador municipal Luís Guedes diz que se trata, "na realidade, de imóvel de uso recreativo (veraneio) e pessoal do pastor Valdemiro Santiago, cujo patrimônio se confunde com o da própria Igreja Mundial do Poder de Deus".
Fontes ouvidas pela reportagem confirmam que Valdemiro era frequentador do local.
Em fevereiro de 2023, foi firmado um acordo entre prefeitura e Mundial para pagamento da dívida em 60 parcelas —o valor corrigido atingiu R$ 2,5 milhões.
'Proibidos de pagar aluguel'
A estratégia de não pagar aluguéis é recorrente na administração da Mundial. A ordem partiria dos líderes regionais e bispos, segundo ex-integrantes da igreja ouvidos pelo UOL.
O gaúcho Fábio Henrique dos Santos, 46, foi pastor na Mundial por 12 anos, até 2021, e relata que recebia ordem direta dos bispos regionais de se manter inadimplente.
"Peguei uma igreja na cidade de Faxinal do Soturno [RS] com cinco meses de aluguel atrasado e diziam que não era para pagar", afirma à reportagem.
"A orientação vinha por mensagem por WhatsApp e ligação, dizendo que não estávamos 'autorizados a pagar aluguel'. Tínhamos que mandar tudo [todo o dízimo arrecadado] para São Paulo e a prioridade era usar o dinheiro para [pagar] as transmissões na TV."
Os bispos diziam seguir a cúpula de pastores da sede no Brás, em São Paulo.
"Não havia explicação sobre o porquê. Era uma ordem e todos cumpriam. Também não se falava sobre dívidas. Os líderes só diziam o que os pastores deveriam fazer, e a gente fazia", diz Santos.
Ex-bispo da Mundial, o pastor Luciano Neves fez parte da denominação por 12 anos. Saiu em 2022 para criar sua própria igreja, a Deus Proverá.
Em conversa com o UOL, ele conta que fazia parte da equipe da administração da Mundial.
A má gestão, segundo ele, foi um dos motivos que o fez sair. Neves confirma os pedidos para pastores não pagarem aluguéis, mas diz que era uma estratégia financeira.
"A televisão consumia muito dinheiro. Então era: 'Vamos escolher entre o copo e a garrafa com água. Deixa o copo no segundo momento, vamos agora colocar o foco na garrafa com água. A ideia era pagar as contas emergenciais, por exemplo, a televisão, para não sair do ar."
Pastor da Mundial por sete anos ouvido pela reportagem também revela que recebia ordens para não sanar as dívidas quando comandava uma filial em Lindóia (SP), em 2009.
"Todo o dinheiro do dízimo deveria ser passado para a sede, na capital", afirma.
O UOL também ouviu outro ex-bispo da Mundial e líder regional que pediu anonimato.
Ele conta que, até 2012, os próprios bispos pagavam os aluguéis. Depois, veio a ordem de repassar toda a arrecadação para a sede.
A complicação surgiu porque a dívida da TV aumentou e a arrecadação caiu. Segundo o ex-bispo, a igreja nunca mais se recuperou.
A Mundial teve diversos arrendamentos de horários em emissoras de televisão entre 2006 e 2023, em canais da TV a cabo e aberta, mas contratos foram sendo encerrados por falta de pagamento. O último acordo foi com o canal 32 e vigorou de 2021 a fevereiro do ano passado.
Igreja fantasma
Com os processos e ações por inadimplência de aluguel, a igreja passou a divulgar um CNPJ diferente para receber as arrecadações.
Esse registro leva o nome de uma instituição chamada Mais que Vencedores e foi feito em abril de 1998.
Advogados de credores afirmam em processos que a denominação existe para que dinheiro de doações não fosse penhorado pela Justiça durante as cobranças.
A Mundial nega a ligação, contrariando o que decidiu a Justiça em um processo.
"Encontra-se evidenciado que a Igreja Mundial Mais que Vencedores foi constituída por meio de fraude e desvio de finalidade", afirmou o desembargador Rodolfo Milano.
Em decisão de agosto de 2023, ele cita a lei: "Desvio de finalidade é a utilização de pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza".
A reportagem foi ao endereço da sede da Mais que Vencedores que consta no registro do CNPJ, no bairro da Mooca, no centro de São Paulo.
Encontrou uma sala em um prédio comercial que, segundo a recepcionista, estava vazia.
O telefone registrado é o mesmo da sede da Mundial no Brás. O email cadastrado é o mesmo da contabilidade da matriz de Valdemiro.
O CNPJ da Mais que Vencedores constava no pé do site da Mundial, para que fiéis enviassem doações por transferência bancária.
Um advogado apontou o detalhe à Justiça em agosto de 2022. Depois disso, o site foi alterado.
Dissidente da Igreja Universal do Reino de Deus, Valdemiro fundou a Mundial em 3 de março de 1998 na cidade de Sorocaba, interior paulista.
A igreja, que diz ter 6.000 templos, ficou mais conhecida a partir de 2008, quando alugou horários no Canal 21, do Grupo Bandeirantes, e passou a transmitir programação religiosa 22 horas por dia.
O que dizem Valdemiro e a Mundial sobre dívidas e bens
A reportagem tenta contato com a Mundial e com Valdemiro Santiago desde novembro de 2023, por telefone, email, mensagens de WhatsApp e pessoalmente, em visita à sede.
Foram feitos pedidos de entrevistas e de posicionamentos sobre as dívidas da igreja e das acusações da Justiça sobre confusão de patrimônio.
A única resposta veio quando um membro da equipe jurídica da igreja atendeu o UOL na porta do escritório administrativo. Ele afirmou que ninguém iria se manifestar.
Após a publicação desta reportagem, o advogado de Valdemiro, Dennis Munhoz, enviou uma nota afirmando, entre outras coisas, que Valdemiro "nunca foi proprietário de qualquer aeronave ou dos imóveis mencionados". Como citado, o avião foi registrado por uma de suas empresas, e a mansão em Ilhabela foi reconhecida como sendo da Mundial.
Também diz que "há diversas decisões na Justiça onde foram afastadas as alegações de confusão patrimonial entre o apóstolo e a Igreja". Estes casos, porém, não excluem as decisões que acataram esse argumento.
"Há quase 15 anos, o apóstolo não exerce qualquer cargo administrativo na igreja, exceto a liderança espiritual. Não assume compromissos financeiros, não faz parte do cargos de representação jurídica, contábil e financeira, tampouco dos conselhos, presidência ou vice-presidência", diz o advogado na nota.
Nos processos, por meio de seus advogados, Valdemiro afirma o mesmo: não é sócio ou administrador da igreja.
Diz que tampouco assinou os contratos de locação dos imóveis, não "tendo poder de decisão".
Ele define sua função como alguém que "presta serviços espirituais de pregação em alguns cultos da entidade, jamais podendo ser responsabilizado pela dívida da Igreja Mundial".
Hoje a Mundial é liderada pelo bispo paraense Roberto Santana da Silva, mas Valdemiro continua sendo a principal voz da instituição.
A igreja segue sendo alvo de novas ações por dívidas. Apenas na primeira quinzena de junho, três ações foram abertas por credores contra a instituição.
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