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Como Mauro Cid virou a chave e se tornou algoz de Jair Bolsonaro

Mauro Cid se sentia cada vez mais solitário na prisão.

O tenente-coronel do Exército já estava havia quatro meses encarcerado no Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília, quando ganhou a companhia de um radinho de pilha para ajudá-lo a passar o tempo.

As visitas do começo — foram 73 nas primeiras três semanas — foram rareando por ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes.

Era o rádio que atualizava Cid dos avanços da PF. Dia a dia, ele ouvia atônito a investigação sair do âmbito das fraudes dos comprovantes de vacina para sua tentativa de vender joias nos EUA, chegando cada vez mais perto de sua família e subordinados.

A virada ocorreu quando, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, seu ex-chefe Jair Bolsonaro afirmou que Cid possuía "autonomia" para agir e vender joias.

Intimado a depor pela PF, o tenente-coronel decidiu falar.

Esses e outros bastidores sobre o primeiro oficial de alto escalão do Exército a ser preso e se tornar delator são assunto do podcast "Cid: A Sombra de Bolsonaro", produzido pelo UOL Prime.

A série em quatro episódios, disponível com exclusividade para assinantes UOL a partir desta terça-feira (2), recupera os anos de formação de Cid até a chegada ao Planalto e refaz seus passos em Brasília.

Ali, no coração do poder, o UOL revela que Cid passou a ser odiado e temido por muitos ministros pela proximidade com o presidente.

O podcast relata momentos cruciais da história recente do país, o que acontecia no entorno de Bolsonaro durante a pandemia, a disputa eleitoral, a derrota para Lula e a trama de um golpe de Estado que não vingou.

A reportagem também foi aos EUA para refazer os passos de Cid, que tentou vender as joias recebidas pelo governo Bolsonaro.

Ouça o primeiro episódio abaixo:

'Cumpria ordens'

A avaliação de generais e outros militares de alta patente é que Cid extrapolou as funções do seu cargo e acabou se envolvendo demais em atividades privadas e do campo político bolsonarista.

Resultado: 54 meses depois de ter assumido o posto de ajudante de ordens, a Polícia Federal batia na porta de sua casa para prendê-lo.

Cid acionou, de início, o advogado Rodrigo Roca. Ele já tinha defendido o tenente-coronel em um processo no STM (Superior Tribunal Militar) e era bem avaliado pela família Bolsonaro.

Logo na primeira semana de prisão, entretanto, Roca defendeu mais o ex-presidente Bolsonaro do que seu próprio cliente.

"Um ajudante de ordens, como o nome do próprio cargo sugere, cumpre ordens ou ajuda no seu cumprimento. Mas também posso adiantar ao senhor que em nenhum desses dois casos houve qualquer intervenção por parte do presidente Bolsonaro. Isso é uma coisa que precisa ser esclarecida desde logo", afirmou, em entrevista.

Aquilo deixou a família de Cid enfurecida. Eles acreditavam que o tenente-coronel seria abandonado à própria sorte.

Os Cid decidiram então trocar de advogado, contratando o criminalista Bernardo Fenelon. Embora especialista em delações premiadas, Fenelon avaliou na ocasião que era possível fazer uma defesa tradicional, porque Cid só respondia à acusação das fraudes nos certificados de vacina.

Quando a PF fez nova operação sobre a suspeita de venda das joias nos EUA e mirou o pai dele, o general Mauro Cesar Lourena Cid, Fenelon deixou o caso.

O advogado foi surpreendido pelas novas revelações e considerou que houve uma quebra de confiança na relação advogado-cliente.

Naquele momento, o sentimento de lealdade que a família Cid tinha com o ex-presidente Jair Bolsonaro se esvaiu.

Para Mauro Lourena, o ex-presidente não demonstrava gratidão pelo silêncio de seu filho na prisão.

Na definição de um dos militares próximos da família, Bolsonaro havia "abandonado o soldado ferido no campo de batalha".

Na mira de todas essas investigações, a família de Cid gastou os dias seguintes se reunindo com advogados em Brasília para buscar um substituto.

Nas conversas, eles deixavam claro que a prioridade era a defesa de Mauro Cid, sem se preocupar em proteger ninguém.

Foi só nesse momento que a família contratou o criminalista Cezar Bitencourt.

Em suas declarações públicas, ele era um crítico ferrenho das delações premiadas.

Mas, logo que assumiu a defesa do ex-ajudante de ordens, Cezar passou a enfatizar que ele apenas "cumpria ordens" em suas ações.

O cenário parecia ter mudado.

Dez horas de depoimento

Durante sua formação, Cid fez o curso das Forças Especiais, batalhão de elite do Exército treinado para se infiltrar em territórios inimigos e até mesmo resistir à tortura.

Mauro Cid não se enxerga como delator. Ele disse a pessoas próximas que não acreditava que o plano de golpe fosse resultar em algo concreto e afirmou que assinou o acordo para contar os fatos que testemunhou, sem fazer juízo de valor.

Mas os três meses de prisão tinham uma perspectiva mais sombria do que ele poderia aguentar.

Sem nenhuma esperança de ser solto e vendo seus familiares na mira da PF, decidiu falar tudo que sabia.

Angustiado com aquela situação, ele disse ao advogado Cesar Bitencourt: "Eu tô apanhando sozinho e essa perseguição tá chegando em gente que não tem nada a ver com a história".

Em 25 de agosto de 2023, Cid falou. Mas a PF queria ouvi-lo mais. Ele foi chamado para outros dois dias de depoimento e falou por mais de dez horas.

Bitencourt, em entrevista exclusiva, disse que a delação não era sua primeira opção e explicou como chegou a essa decisão.

"Não é uma escolha. A gente não pediu nem pra fazer [a delação]; a gente foi provocado a fazer", afirmou.

Ele conta ter conversado com Mauro Cid e explicado ao cliente que as condições do acordo eram vantajosas, por isso o tenente-coronel optou por esse caminho.

"Tem que ser interessante também para o cliente, então eles [a PF] fizeram a proposta. Eu falei 'Cid, vale a pena aceitar'. Eu autorizei. Se eu não quisesse, não faria. A última palavra é minha, mas ele concordou", afirmou.

Mauro Cid deixou a sede da Polícia Federal no dia 31 de agosto de 2023 com seu acordo de delação premiada assinado.

A expectativa é que, caso a Justiça considere sua colaboração, ele e sua família podem ser beneficiados até mesmo com o perdão judicial.

Cid narrou aos investigadores o envolvimento de Jair Bolsonaro em assuntos como as fraudes nos certificados de vacina, a venda de joias dadas ao governo brasileiro e a discussão de um plano golpista para continuar no cargo.

As investigações sobre esses assuntos estão na fase final. Quando forem finalizadas, o ministro do STF Alexandre de Moraes vai definir o destino do tenente-coronel.

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