Presidente da Câmara Municipal de São Paulo desde 2020, Milton Leite (União Brasil) tem um slogan famoso: "Não tem segredo, tem trabalho". Mas como ele conquistou tanto poder é um mistério que há tempos ronda a política.
Leite lidera a Casa de 55 vereadores com tamanha influência que dizem ser ele, e não o prefeito Ricardo Nunes (MDB), quem realmente governa a cidade.
O vereador, inclusive, gostaria de ter sido vice na chapa de Nunes na campanha de 2024. Foi preterido por Ricardo Mello Araújo (PL), ex-comandante da Rota.
Leite anunciou que não disputará o oitavo mandato como vereador.
"Encerro 28 anos de mandato de cabeça erguida, tendo trabalhado muito, economizado mais de R$ 1 bilhão de dinheiro público e, orgulhosamente, sem nenhuma condenação judicial", afirma.
Na convenção do União Brasil, no último sábado (20), uma ala do partido cogitou lançá-lo candidato a prefeito. Nos portões do diretório havia um cartaz com uma silhueta e as palavras: "Prefeito? Será?".
Leite refuta que fosse ele na imagem.
O chefe da Câmara despacha no gabinete no sétimo andar ou na sala da presidência, no oitavo. Ali mantém um retrato do ex-prefeito Bruno Covas (PSDB), morto em 2021.
Autoproclamado de centro, negocia com quem tiver de negociar. Entre aliados estão parlamentares do PL ao PT (o último, teoricamente, partido de oposição).
Leite vive o momento mais delicado desde que se elegeu vereador pela primeira vez, em 1996. É um dos alvos da Operação Fim de Linha, investigado por suposta relação com a empresa de ônibus Transwolff.
A companhia é acusada pelo Ministério Público de São Paulo de lavar dinheiro para o PCC. O MP aponta um "estreito relacionamento" entre Leite e a cúpula da Transwolff, conforme revelou o UOL. Ele nega.
O vereador tem uma relação conflituosa com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que anunciou Mello Araújo na chapa de Nunes.
Leite então indicou o desembarque da campanha de Nunes. O partido dele considera apoiar Pablo Marçal (PRTB). O vereador diz que a relação com Tarcísio é "excelente" e que a chance de abraçar Marçal é "zero".
Tudo sob controle
Um aliado conta que o presidente gosta de mostrar controle da situação. Celebra qualquer vitória como quem busca aprovação dos pares.
"Milton Leite domina essa Casa como nunca vi. A base faz à risca o que ele quer. Ele consegue passar os negócios que o Executivo acaba fazendo em nome do grande empresariado", diz o vereador Toninho Vespoli (PSOL).
"Ele é bastante centralizador. Até atos mais corriqueiros, como convocações para audiência pública, precisam passar pela aprovação dele", afirma a vereadora Luana Alves (PSOL).
Os parlamentares do PSOL estão entre os poucos que fizeram declarações públicas sobre Leite ao UOL.
A reportagem ouviu mais de 30 pessoas e acessou mais de cem documentos para contar quem é "ML", como muitas vezes ele é citado até por promotores de Justiça.
A maioria dos entrevistados pediu anonimato: dizem ter medo de Milton Leite. Um dos entrevistados pediu para a reportagem guardar o smartphone em uma caixa bloqueadora de sinal durante a conversa.
Desconheço qualquer vereador que tenha temor a minha pessoa. Milton Leite
Quando estourou a Operação Fim da Linha, em abril, ficou um "silêncio ensurdecedor" na Câmara, conta ao UOL o vereador Fernando Holiday (PL).
"Dois assuntos são tabus na Câmara: lixo e transporte. Dois assuntos realmente blindados, o que, ao meu ver, deve significar que há coisas a serem investigadas", completa.
Homem de negócios
Leite é "um ser político orgânico", dizem interlocutores, aliados, ex-aliados e adversários políticos.
Ele é visto como líder inteligente, habilidoso, trabalhador, vaidoso, articulado e, acima de tudo, "um homem de negócios".
Aliado de Leite, o vereador Sidney Cruz (MDB) lamenta a "aposentadoria" dele. O descreve como um pacificador capaz de potencializar convergências.
Cruz endossa os relatos de que Leite é habilidoso e tem apreço pelas articulações "com participação dele como personagem principal".
"Se existe medo [por parte das fontes ouvidas pela reportagem], acho um equívoco", afirma. Os que disseram temer Leite, acrescenta, "não tiveram coragem de sentar e tentar buscar o diálogo com o presidente".
Outro aliado, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), conta que o presidente é respeitado por todos pelo "viés de conciliação" que leva à Câmara. "É uma referência."
Nos corredores, o vereador também é chamado de "dragão-de-komodo", um réptil cuja saliva é tóxica. "O dragão babou", costumam dizer quando se descobre que Leite conquistou mais um aliado.
Uma fonte do setor de transporte por ônibus na capital paulista diz que muitos preferem nem pronunciar o nome do presidente da Casa, como se fosse Lord Voldemort, vilão da saga "Harry Potter".
Leite diz desconhecer os apelidos.
É consenso nos bastidores que Leite se tornou o homem mais poderoso de São Paulo.
Diversas fontes ouvidas pela reportagem dizem temer represálias dele.
"Todo mundo tem medo de Milton Leite", diz o advogado André Luís Lopes Santos, que já ajuizou diversas ações contra empresas como a Transwolff.
Leite, por sua vez, se revolta com a investigação que o liga ao PCC.
"Querem assassinar minha reputação", afirmou, quando a Folha de S.Paulo revelou que a Justiça autorizou a quebra de seu sigilo fiscal e bancário.
Após a Operação Fim da Linha, um youtuber identificado como Frank publicou vídeos associando Leite ao crime organizado.
O parlamentar foi à Justiça e pediu para o Google tirar os vídeos do ar. O próprio usuário deletou os arquivos. Os vídeos não estão mais disponíveis.
A ascensão
Canhoto, católico e paulistano de Piraporinha, zona sul, Milton Leite abriu uma pequena empreiteira no fim da década de 1970.
"Colocou a mão na massa e teve a iniciativa de desenvolver mutirões de habitação em toda a zona sul. Carregou blocos, ergueu paredes", diz a biografia do parlamentar publicada no site oficial da Câmara.
Aos 25 anos, Leite morava em Santo Amaro, tinha uma Brasília branca e se declarava "tecnólogo", segundo um processo judicial de 1981 ao qual o UOL teve acesso.
Na época, ele deu um cheque sem fundo para pagar uma funilaria, e o mecânico acionou a Justiça.
Leite justificou que sustou o cheque porque o serviço foi incompleto e precisou levar o carro a outra oficina. O caso foi arquivado.
Treze anos depois, Leite já se declarava empresário. Mudou-se para o Jardim Marquesa, também na zona sul, informa um processo judicial de 1994.
Foi instaurado um inquérito policial contra sua construtora, a Lesimo, referente à emissão de Darf falso (um documento para pagamento de impostos federais). A empresa quitou o que devia.
Leite também foi acusado de sonegação fiscal pelo MPF (Ministério Público Federal).
"Nos anos de 1996 a 1999, apresentou aumento patrimonial a descoberto, omitiu aluguel recebido de pessoas físicas, omitiu rendimentos recebidos de pessoa jurídica", afirma a denúncia.
Ele diz que foi um erro de seu contador. Leite pagou uma multa de mais de R$ 1 milhão à Receita Federal, e o processo foi encerrado.
No fim da década de 1990, ingressou na política.
Foi filiado ao PCB na juventude e migrou para o MDB, sigla pela qual cumpriu dois mandatos. Em 2008, foi para o DEM.
Com a fusão entre o DEM e o PSL que originou o União Brasil, em 2021, tornou-se um dos quadros mais fortes do novo partido.
Leite preside o União Brasil na capital paulista e é tesoureiro do diretório estadual.
O empoderamento
Depois do Jardim Marquesa, ML morou em Interlagos, área nobre na zona sul.
Ele foi acusado de atropelar o economista Jorge Theodoro na marginal Pinheiros, em 2018.
Leite diz que foi o motociclista quem bateu na traseira de seu carro.
O político dirigia na época um Mercedes-Benz com a CNH suspensa.
Jorge, que guiava uma moto Honda, teve diversas fraturas e ficou 17 dias internado, segundo o processo ao qual o UOL teve acesso. Ele conta que ficou com sequelas.
"Milton Leite destruiu minha vida. Estou refazendo minha vida agora aos 40 anos como corretor de seguros."
Jorge diz que tentou conversar com o vereador várias vezes. Chegou a procurá-lo pessoalmente na Câmara ao menos duas delas, mas não foi recebido.
Ele também abriu um processo contra Leite, mas o caso não avançou e, segundo a Justiça, prescreveu em 2022. "A Justiça não existe."
Leite diz que não quis contato porque foi ameaçado por Jorge de ser exposto na imprensa.
Um Mercedes-Benz está entre os bens declarados por Leite nas eleições de 2020.
Ele também declarou dez casas, dois terrenos, dois barcos, um Vectra, um quadriciclo, um caminhão e uma série de investimentos, totalizando R$ 3,6 milhões de patrimônio.
Leite teve a campanha para vereador mais cara de 2020: R$ 2,5 milhões, segundo dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Foi o segundo vereador mais votado da cidade, com 132 mil votos.
Ficou atrás apenas de Eduardo Suplicy (PT), que teve 167 mil votos -- e que declarou gastos de R$ 236 mil.
Leite foi "empoderado", segundo fontes ouvidas pela reportagem, durante a era João Doria (à época no PSDB, hoje sem partido) na política paulista.
Doria foi prefeito entre 2017 e 2018 e governador entre 2019 e 2022. Ele não quis dar entrevista.
O ex-prefeito teria dado a Leite o poder de indicar aliados para órgãos como SPTrans, Setram (Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito) e CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), no nível municipal.
Na esfera estadual, Leite fez escolhas para o DER (Departamento de Estradas e Rodagem) e a STM (Secretaria de Transportes Metropolitanos).
Leite diz que "não foi combinado", mas que ele foi um articulador de Doria em assuntos que tramitavam no Legislativo.
"É natural que eu tenha feito a articulação, pois era o presidente da Câmara", afirma.
Esse poder teria se intensificado no governo Nunes. Leite diz que é "mito".
Em qual pasta eu interfiro? Que tem uma gestão minha? O que eu peço é o que todo mundo pede: preciso melhorar o hospital, preciso melhorar todo mundo. Precisa levantar recurso aqui, melhorar ali. 'Ah, não tem dinheiro.' Então vamos melhorar a receita e equilibrarmos as finanças da cidade. Milton Leite
'ML pediu'
Às vezes o presidente da Câmara pede providências na CET, conta uma fonte que tem mais de duas décadas de companhia: precisa fazer isso porque Milton Leite pediu.
No Carnaval de 2023, por exemplo, Leite mobilizou viaturas da CET para escoltar carros da escola de samba Estrela do Terceiro Milênio, do Grajaú, na zona sul, até o sambódromo do Anhembi, na zona norte.
O vereador é presidente de honra da agremiação.
No Carnaval de 2024, alugou um clube para receber convidados, com ônibus fretado para ir ao camarote no sambódromo. A operação teve apoio da CET.
O órgão não confirmou nem negou operações a pedido de Leite, apenas informou que anualmente realiza operação especial de trânsito no Carnaval.
"O objetivo é viabilizar a travessia de carros alegóricos, em todas as regiões da cidade", afirmou, por email.
"É papel da CET escoltar todos os carros alegóricos de todas as escolas entre a Fábrica do Samba 2 e o sambódromo, até porque os veículos precisam trafegar pela marginal. Portanto, é mentira que eu tenha pedido qualquer escolta específica para uma escola", respondeu Leite.
Entre os convidados para o aniversário de Leite, em 27 de janeiro, estão esses aliados indicados -- a presença é obrigatória, comentava-se nos corredores da CET.
A última festa, com show de Jorge Aragão, reuniu personalidades e políticos no Terra SP, casa country com capacidade para 4.000 pessoas na zona sul.
Nas eleições de 2020, ML prometeu a cooperativas de vans um edital "gigante" do TEG (Transporte Escolar Gratuito), vinculado à Setram.
O objetivo era pedir votos para os filhos Alexandre Leite e Milton Leite Filho, ambos do União Brasil. Eles se reelegeram deputado federal e deputado estadual, respectivamente.
Ex-assessores da "família Leite", como é conhecido o clã, trabalham na secretaria.
Uma fonte diz que, às vezes, pinga uma "ordem de cima". É a senha para dizer que ML mandou, por exemplo, o setor receber presidentes de certas cooperativas.
Entre esses indicados está Patrícia Araújo, ex-assessora de Leite e hoje chefe de gabinete da Setram. Ela foi citada no inquérito da Operação Fim da Linha, revelou o UOL.
Patrícia escreveu para Luiz Carlos Efigênio Pacheco, o Pandora, um dos dirigentes da Transwolff, com o convite para uma reunião do Conselho Municipal de Trânsito, em 2017.
"O Milton pediu para que enviasse um representante", diz o email. "Obrigado... Os representantes estarão lá", Pandora respondeu de seu smartphone.
Leite diz que conhece todos os empresários e sindicalistas do setor de transporte. "Óbvio que eu conheço [todos]. É uma relação institucional."
Ele atribui as acusações de proximidade com a Transwolff ao fato de a garagem dos ônibus ficar a 500 metros do escritório dele na zona sul.
"É na zona sul, o povo lá pede voto. Qual é o crime de pedir voto pra mim?"
"Ele [Pandora] é um cara de família, simples, medroso. Se tiver [relação com o crime organizado], para mim, é surpresa."
O 'presidente'
Leite articulou uma alteração na Lei Orgânica que limitava a dois anos o mandato da mesa diretora da Casa.
Com a mudança, aprovada no plenário em 2023, o presidente poderia se reeleger indefinidamente.
Interlocutores dizem que Leite faz questão de ser chamado de "presidente" e, quando o prefeito não está e ele está cumprindo o papel interinamente, de "prefeito".
Um ex-correligionário conta que ML é um líder centralizador. Durante o tempo que dividiram a bancada e a diretoria, viu que Leite não convocava reuniões: decidia sozinho e as pessoas precisavam ligar para ele para perguntar o que foi decidido.
"Eu vou te foder, eu vou te cassar", disse o presidente, de acordo com testemunhas ouvidas pela reportagem, em uma discussão na Câmara com o vereador Camilo Cristófaro (União Brasil, hoje no Podemos).
Leite nega veementemente a discussão. "O fato é que ele foi cassado por motivo mais do que justo numa decisão histórica, aprovada por 47 dos 55 vereadores, e que serviu de exemplo para todo o país."
Camilo foi cassado em setembro de 2023 por declarações racistas feitas em maio de 2022. Procurado, Camilo não quis comentar.
Ele reclamou a um amigo negro da subprefeitura do Ipiranga sobre a limpeza que estava sendo realizada: "Isso daí é coisa de preto". O diálogo foi filmado.
Filho de um homem negro e de uma mulher branca de origem italiana, Leite costumava destacar sua ascendência europeia, dizem interlocutores.
Segundo processos desarquivados pelo UOL, ele se declarava pardo. Só recentemente teria assumido, por completo, a negritude. "Sou um capitalista negro que não é aceito pela elite branca paulistana", costuma dizer a interlocutores.
Segundo fontes, Leite exerce um "controle férreo" da Casa, desde a convocação de audiências públicas até as votações.
Há sessões importantes que se estendem até a madrugada.
Nas da Operação Urbana Água Espraiada, por exemplo, vereadores brincavam dizendo que "um carro-forte" estava chegando à Câmara.
Isso porque as operações urbanas despertavam interesse de incorporadoras, e Leite, segundo fontes, jogava a favor de certas empreiteiras
Ele nega essa articulação: "Desconheço tamanha mentira".
Nas discussões sobre o projeto de lei que permitiria a privatização da Sabesp, Leite quis avaliar antes os requerimentos.
Foram aprovados apenas três pedidos da Comissão de Finanças e Orçamento. Um deles era para uma audiência pública, marcada para 23 de maio.
Essa sessão acabou cancelada após a aprovação do PL em 2 de maio.
Campanha de 2024
Leite continuou crescendo nas gestões de Bruno Covas (PSDB), entre 2018 e 2021, e Ricardo Nunes (MDB), que assumiu em 2021.
Na esfera estadual, o tabuleiro ficou estremecido com a ascensão do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que assumiu em 2023.
Primeiro, Leite perdeu influência no DER e na STM, entre outros. Segundo interlocutores políticos de diversos partidos, o poder do presidente da Câmara incomodava.
Depois, perdeu uma queda de braço: Leite queria ser vice-prefeito na chapa de Nunes, mas a vaga foi preenchida pelo coronel Mello Araújo, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Leite lançou dois aliados como pré-candidatos a vereador: Silvão e Silvinho.
Silvio Antonio Azevedo, o Silvão, é seu atual chefe de gabinete, e Silvio Ricardo Pereira dos Santos, o Silvinho, é seu aliado na subprefeitura de M'Boi Mirim, seu reduto eleitoral na zona sul.
Milton Leite deve se despedir da Casa. Aos 68 anos, talvez se aposente, ficando só nos bastidores da política, e passe os dias pescando e criando galinhas na zona sul.
Depois de 28 anos de mandato. É um ciclo da vida que se encerra.
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