O presidente Lula (PT) favoreceu seis cidades governadas pelo PT ou aliados com R$ 1,4 bilhão, desde a sua posse em 2023.
Repasses ocorreram sem aval da área técnica ou justificativas detalhadas, em valores maiores do que os solicitados e com pedido de "prioridade" escrito à mão.
As cidades de Mauá, Araraquara, Diadema e Hortolândia — as três primeiras do PT em SP — e Cabo Frio e Belford Roxo — governadas por aliados no RJ — foram beneficiadas.
Elas levaram vantagem frente a cidades maiores ou com menor IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) na liberação de verbas.
Araraquara e Diadema, por exemplo, receberam mais recursos da Saúde para exames e cirurgias do que 13 capitais, incluindo Belo Horizonte, Porto Alegre e Maceió.
O UOL apurou que as negociações partiram do gabinete do presidente e envolvem verbas próprias de orçamento dos ministérios da Saúde, Cidades, Educação, Trabalho e Assistência Social.
Advogados especializados em direito administrativo consultados pelo UOL veem indícios de tráfico de influência e improbidade administrativa nos repasses às prefeituras.
Procurada, a assessoria do Palácio do Planalto afirmou que os atendimentos de demandas levadas por prefeitos ao presidente Lula (PT) seguem "critérios objetivos" e que "os recursos são liberados pelos ministérios de forma documentada" (leia mais sobre o que disse a assessoria de Lula).
Perguntada especificamente sobre se o presidente favoreceu essas cidades, a assessoria não respondeu.
Acesso VIP a Lula
A apuração do UOL indicou que a destinação das verbas dos ministérios para aliados teve a participação do chefe de gabinete de Lula, Marco Aurélio Santana Ribeiro, conhecido como Marcola.
Ele é uma espécie de "faz tudo" e só não tem mais acesso a Lula do que a primeira-dama, Janja da Silva.
Desde o início do governo, Marcola se reuniu 33 vezes com prefeitos e secretários municipais no Palácio do Planalto — 22 delas com integrantes do grupo de seis prefeitos.
Nos encontros, que contaram também com assessores de ministérios, Marcola tratou até de liberação de verbas.
Queremos agradecer ao chefe de gabinete do presidente Lula, Marco Aurélio Marcola, que também pegou a cidade de Hortolândia como prioridade.
Cafu Cesar (PSB) ex-secretário e pré-candidato a vice-prefeito de Hortolândia
Cafu se referia à liberação de R$ 50 milhões para exames e cirurgias, em outubro.
Na ocasião, ele também agradeceu ao presidente.
Para receber o dinheiro, a prefeitura nem sequer informou quanto precisaria para os procedimentos médicos, o que atropela regras internas da Saúde.
Cafu trabalhou para o ex-ministro José Dirceu em 2005, no auge do escândalo do mensalão. Ele é um forte aliado do PT em São Paulo.
O então secretário foi recebido por Lula em janeiro, fora da agenda, conforme registrou em sua rede social.
Marcola o recebeu outras quatro vezes — o primeiro encontro havia ocorrido dias antes da liberação dos R$ 50 milhões.
Sobre a atuação do chefe de gabinete de Lula, a assessoria do Palácio do Planalto afirma que faz parte de sua rotina "receber autoridades".
Ao UOL, Cafu disse que "as tratativas para envio de recursos" para a cidade são feitas "respeitando todos os trâmites necessários e a hierarquia institucional" (leia mais).
Apesar das críticas por isolamento político, o presidente abre exceção a esse grupo.
Desde que tomou posse, Lula teve 17 reuniões com prefeitos em seu gabinete, dentro e fora da agenda — 12 delas foram com os prefeitos de Araraquara, Mauá, Diadema, Belford Roxo e Cabo Frio. No caso de Hortolândia, a agenda foi com o então secretário Cafu Cesar.
O conteúdo das conversas reservadas foi relatado pelos próprios prefeitos a seus eleitores. Em vídeos nas redes sociais, eles revelaram acertos fechados com Lula.
Explorado pelos prefeitos, o acesso VIP virou até campanha publicitária.
E o Pix? Lula mandou.
Campanha publicitária da Prefeitura de Diadema
Rede de favorecimento
As ordens foram comunicadas pessoalmente a ministros ou a chefes de gabinete com quem Lula tem mais intimidade por um grupo de pessoas da máxima confiança do presidente.
Esse processo tinha por objetivo não expor Lula.
Além de Marcola, compõem a rede:
- Mozart Sales, assessor especial do ministro Alexandre Padilha na SRI (Secretaria de Relações Institucionais);
- Swedenberger Barbosa, o Berger, secretário-executivo do Ministério da Saúde;
- Guilherme Simões Pereira, indicado por Guilherme Boulos (PSOL), deputado e pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, para comandar uma secretaria do Ministério das Cidades.
A agenda de Mozart Sales registra 15 idas oficiais ao Ministério da Saúde em um ano e seis meses. Mas a portaria da pasta mostra que o assessor entrou 76 vezes no prédio, segundo informações obtidas via LAI (Lei de Acesso à Informação).
O principal destino de Sales foi a secretaria-executiva (40 vezes), controlada por Berger. Ele foi assessor do gabinete pessoal de Lula entre 2003 e 2010.
Berger passou a controlar a liberação de recursos após uma portaria ampliar suas atribuições na pasta.
A Saúde já pagou R$ 649 milhões às seis cidades.
Mozart acompanhou reuniões com representantes do grupo em duas visitas.
Na ocasião, Eliana Honain representou Araraquara no encontro. Ela é a aposta de Edinho Silva (PT) para sucedê-lo.
Segundo a assessoria da SRI, as reuniões de Mozart Sales no Ministério da Saúde fazem parte das suas atribuições. A secretaria não esclareceu, contudo, por que ele omitiu 76 reuniões de sua agenda oficial (leia mais).
Entre outubro e maio, a Saúde enviou R$ 94 milhões para Araraquara.
A pasta chegou a advertir sobre a ausência de pedido formal e estudos relativos à parte desse valor (R$ 59 milhões).
Nada foi feito, e mesmo assim o dinheiro saiu.
Em maio, a pasta levou 48 horas para analisar toda documentação e autorizar mais R$ 29 milhões para Araraquara — a urgência não foi justificada.
Prioridades invertidas
As seis cidades reúnem 0,86% da população brasileira e não figuram entre os piores IDHMs.
Araraquara se destaca em qualidade de vida com o 14º melhor IDHM.
Já Cacimbas (PB) e Cachoeira do Piriá (PA) — com os piores IDHMs — convivem com extrema miséria. Desde 2023, pediram, ao todo, R$ 6,6 milhões à Saúde, mas não foram atendidas.
Em um dos pedidos de verba feitos por Diadema, o UOL identificou uma solicitação de "prioridade", escrita à caneta e assinada pelo então secretário de Atenção Especializada Helvécio Magalhães.
O ofício não registrava explicação para a ordem.
No mesmo pedido, feito em agosto e pago dois meses depois, Diadema solicitou R$ 70 milhões, mas recebeu R$ 5 milhões a mais sem justificativa.
Mauá recebeu R$ 42 milhões em outubro, embora nota técnica da Saúde tenha analisado um pedido de apenas R$ 250 mil.
Em junho, Diadema e Mauá receberam, cada uma, mais R$ 20 milhões em uma mesma portaria que atende só as duas cidades.
O documento tem três frases, enquanto o trâmite normal envolve textos maiores, de até 16 parágrafos.
Segundo uma fonte que participou da liberação dos recursos, o desrespeito às regras ocorreu porque as ordens saíram do gabinete do presidente.
Não fosse isso, ninguém colocaria sua assinatura em um processo que pode gerar suspensão dos direitos políticos, multa e perda de função pública.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que "refuta quaisquer ilações de desvio de finalidade nos repasses de recursos do Sistema Único de Saúde, observando rigorosamente a legislação federal e os princípios da Administração pública" (leia mais sobre o posicionamento da pasta).
Diadema à frente da Maré
Em setembro, Marcola se reuniu no Planalto com o secretário Nacional de Periferias, Guilherme Simões Pereira, e o prefeito de Diadema.
Simões toca o Periferia Viva, programa com R$ 5,2 bilhões para urbanização de favelas.
O Ministério das Cidades, ao qual a secretaria está vinculada, publicou os critérios de seleção pouco mais de uma semana após a reunião.
Diadema receberá R$ 198 milhões, a maior verba do programa considerando recursos próprios do orçamento para os municípios.
Mauá foi contemplada com R$ 160 milhões.
Nas favelas de Diadema beneficiadas, moram 2.200 famílias.
Para efeito de comparação, a Prefeitura do Rio receberá R$ 28 milhões a menos para investir na favela da Maré, cuja população é maior que a de 96% dos municípios brasileiros.
O Ministério das Cidades afirmou que "segue critérios técnicos para a destinação de recursos no âmbito de todos os seus programas".
Em dezembro, Diadema conseguiu R$ 148 milhões com o Ministério da Educação para construir um centro educacional — R$ 39 milhões foram pagos assim que o termo foi assinado.
O prefeito contou nas redes que tratou da verba diretamente com Lula, e não com o ministro.
O Ministério da Educação, assim como as pastas da Assistência Social e Trabalho, não se manifestaram. O espaço segue aberto.
Procurados, os prefeitos favorecidos também não retornaram.
Os documentos foram compilados usando a ferramenta Pinpoint, do Google, e estão disponíveis para consulta pública. Veja aqui: https://journaliststudio.google.com/pinpoint/search?collection=8a4f9eb681efcf73
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