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PT e PCdoB afrouxam controle sobre verba bilionária de órgão de inovação

A verba bilionária de ciência e tecnologia do governo federal, controlada pelo PT e pelo PCdoB, tem sido usada em empréstimos a empresas de vários setores — de fábrica de batata frita a loja de roupas na internet.

Os juros são mais baixos que os do mercado.

A Finep, estatal de ciência e tecnologia, se tornou uma espécie de BNDES paralelo, oferecendo taxas que variam de TR (taxa referencial) + 2,8% ao ano a TR + 4,3% ao ano. Só que, diferentemente do BNDES que é um banco com a função legal de fomentar empreendedorismo e é submetido a controles de governança, a Finep é um uma empresa pública que não tem a mesma atribuição, sendo limitada ao incentivo à inovação científica e tecnológica.

Nenhum banco, privado ou público, oferece esse patamar de juros.

As empresas estão pagando, em média, 5% ao ano, com um prazo de 10 a 16 anos para restituir o dinheiro à estatal.

O BNDES, por exemplo, cobra pelo menos 5,9% ao ano em juros. Os bancos comerciais, de 20% a 30%, segundo levantamento do Banco Central.

Para obter os empréstimos "amigáveis" administrados pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), é preciso apresentar um projeto que proponha inovação tecnológica.

A empresa pública está ligada ao MCTI (Ministério de Ciência e Tecnologia).

Procurada, a Finep afirmou que "qualquer empresa que tenha um projeto de inovação e atenda às condições operacionais pode enviar um projeto". Depois da publicação da reportagem, o MCTI e a Finep enviaram uma segunda nota, contestando alguns pontos abordados pelo UOL. A nova manifestação pode ser lida aqui.

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A estatal diz que os projetos de crédito são avaliados pelas equipes operacionais e de crédito da Finep, que aferem mérito e capacidade financeira da empresa.

Eles passam pelo crivo de vários envolvidos, antes de serem aprovados pela diretoria executiva, frisa a organização.

"Não há interferência e/ou aprovação por parte do ministério dos projetos financiados."

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Imagem: Arte/UOL

Projetos estão sob sigilo

Entre os beneficiados, estão grandes empresas.

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Em 2023, uma empresa de fertilizantes, a Galvani, recebeu um crédito de R$ 334 milhões da Finep para duplicar a sua mineração de fosfato em Irecê (BA).

A Volkswagen obteve R$ 259 milhões para seu "plano estratégico de inovação". A Taurus, fábrica de armas, R$ 175 milhões.

Não é possível saber detalhes dos projetos, que são tratados como sigilosos por conterem informações comercialmente sensíveis, segundo a própria Finep disse via Lei de Acesso à Informação.

Há apenas informações genéricas sobre as propostas.

A Kyly, empresa de roupas infantis, por exemplo, recebeu R$ 43 milhões para um projeto de inovação tecnológica.

Segundo a estatal, ele consiste em "desenvolvimento digital de coleções ao showroom virtual, projeto de integração total e novos processos para uma indústria têxtil de confecção infantil".

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Sede da Finep no Rio
Sede da Finep no Rio Imagem: Reprodução

Concentração de poder

O orçamento da Finep, que havia sido cortado em mais de 80% desde o fim do governo Dilma Rousseff, foi reconstituído no governo Lula.

Os contratos assinados com empresas somaram R$ 11,4 bilhões em 2023.

É o maior valor desde 2014, quando o total ficou em R$ 9,2 bilhões (R$ 15 bilhões, corrigidos pela inflação).

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O reforço ao caixa da Finep veio por verbas de investimento da União, que subiram 33% no primeiro ano do governo Lula, chegando a R$ 68,6 bilhões.

Uma mudança nas regras deu mais poder ao secretário-executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia, Luís Fernandes, do PCdoB, sobre o destino desse dinheiro, em detrimento da área técnica e de especialistas.

Ao longo de 2023, novas regras instituídas pelo governo tiraram poder, segundo servidores, do conselho diretor do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que é de onde vem o financiamento da Finep.

Prioridades

O conselho é um órgão interministerial, com representantes da comunidade científica e tecnológica.

O papel do secretário-executivo do MCTI, Luís Fernandes, se tornou mais relevante na gestão do dinheiro e na elaboração das prioridades de investimento.

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Essas prioridades já chegam praticamente prontas aos demais gestores.

O presidente da Finep, Celso Pansera, ex-deputado federal do PT e ministro da pasta na gestão Dilma Rousseff, também participa das reuniões em que são decididas as prioridades do fundo e, consequentemente, da Finep.

Em 2023, foram gastos R$ 6,1 bilhões na modalidade de "crédito direto", em que os empréstimos são obtidos com propostas submetidas diretamente à Finep.

Já na categoria de "subvenção direta", em que há chamadas públicas por projetos e as taxas de juros são mais favoráveis, o valor foi de R$ 1,45 bilhão.

Há ainda R$ 2,2 bilhões em crédito descentralizado, administrado por outras instituições, entre outras modalidades.

A diretoria que avalia os projetos é eleita pelo conselho de administração da Finep, presidido por Fernandes.

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O conselho fiscaliza os gastos anuais da estatal e tem quatro dos sete de seus membros indicados pelo MCTI.

Evento de lançamento da nova unidade de mineração da Galvani em Irecê (BA)
Evento de lançamento da nova unidade de mineração da Galvani em Irecê (BA) Imagem: Reprodução

'Ministro de fato'

Luís Fernandes é o quinto servidor federal que mais gastou dinheiro público com viagens em 2023. Ele divide seu expediente no MCTI com o trabalho na Finep, no Rio.

Foram R$ 276 mil em passagens em 2023, com 54 viagens para o Rio e para Brasília.

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Ele é considerado o "ministro de fato" da pasta pelos servidores ouvidos pelo UOL, por ser quem define para onde vai o dinheiro do MCTI.

Fernandes, militante do PCdoB desde a ditadura militar, foi secretário-executivo do ministério de Ciência e Tecnologia entre 2004 e 2006, presidiu a Finep de 2007 a 2011 e migrou para o Ministério do Esporte em 2012, como número dois de Rebelo.

Quando Rebelo voltou ao MCTI, Fernandes também voltou a presidir a Finep, onde ficou até o segundo governo Dilma e para onde gostaria de ter retornado agora, no governo Lula.

Na transição, perdeu a queda de braço para o PT, que ficou com a presidência da estatal, mas acabou nomeado secretário-executivo do MCTI por Luciana Santos.

Fernandes ocupa hoje o cargo de presidente do conselho de beneméritos do Vasco.

BNDES paralelo

A política de garantir juros subsidiados com o orçamento de ciência e tecnologia a empresas que oferecem inovações — e não necessariamente projetos científicos — é criticada por especialistas da área.

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Essa estratégia, no entanto, já havia sido aplicada em governos petistas anteriores.

As diretrizes da Finep não mudaram, mas o orçamento da área caiu brutalmente em 2015, ano de crise econômica no segundo governo Dilma Rousseff.

A estatal nunca voltou a ser prioridade nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro e teve um desembolso médio anual de R$ 3,5 bilhões em operações.

Foi no governo Lula que o orçamento de ciência e tecnologia foi, finalmente, recomposto.

Renato Peixoto Dagnino, professor de política científica e tecnológica da Unicamp, diz que a Finep foi criada em um contexto de desenvolvimentismo nos anos 1970, quando desenvolver tecnologia para substituição de importações era uma preocupação.

Aos poucos, essa política foi sendo substituída pelo que ele chama de "inovacionismo".

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Isso acaba não sendo eficiente para absorver a mão de obra das universidades em pesquisas porque, na maioria das vezes, trata-se de uma adaptação de tecnologia importada, ele frisa.

"O vínculo que a Finep tinha com uma proposta nacional-desenvolvimentista está cada vez mais corroído. O que a gente pode perceber é que hoje está se falando em uma 'nova indústria Brasil' e mais uma vez vai ser colocado dinheiro a fundo perdido nas empresas."

Política industrial

Luís Fernandes disse ao UOL que a Finep não escolhe empresas, mas projetos.

Segundo ele, a estatal segue as diretrizes da política industrial do governo Lula, a Nova Indústria Brasil, e avalia os projetos para priorizar os que promovam mais inovação.

Fernandes nega que as novas regras de gestão do FNDCT, de 2023, tenham aumentado o poder dele e do ministério sobre a verba do fundo.

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"É mais célere e mais focado. Não é que concentrou mais poder no ministério. A governança do FNDCT é estabelecida por lei. O plano anual de investimentos como um todo é de responsabilidade do conselho diretor do FNDCT."

Projetos

O UOL procurou empresas que receberam empréstimos no ano passado sobre seus projetos.

A Volkswagen, que recebeu um dos maiores empréstimos do ano (R$ 259 milhões), não quis comentar a finalidade do projeto.

A Bem Brasil, que vende batata frita congelada e recebeu R$ 111 milhões da Finep, diz que tem intenção de criar um centro de pesquisa e desenvolvimento, além de adotar práticas de sustentabilidade.

A Unimed, que recebeu R$ 162 milhões, afirma que usará o dinheiro em projetos de inteligência de dados, em infraestrutura tecnológica e na criação de novos portais e aplicativos.

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A Tramontina, com R$ 56,4 milhões, afirma estar trabalhando em melhorias na "fabricação de itens conformados a quente, injeção de plástico com processo em 'machine learning' e processos de envernizamento em madeira", entre outras tecnologias.

A Galvani, mineradora que tem o projeto em Irecê (BA), disse estar aplicando uma tecnologia "que introduz um modelo inédito de calcinação para a produção de fosfato no Brasil, considerado estratégico (...), reduzindo a dependência de importações".

A empresa destaca que, com o financiamento, irá operar uma unidade com 900 postos de trabalho, e que seu projeto foi selecionado pela Finep por seu "grau de inovação e relevância".

A Taurus, que recebeu um crédito de R$ 175 milhões, afirmou que ficará em "um novo patamar industrial" com o investimento. A empresa disse que, com a verba, está financiando um Centro Integrado de Tecnologia e Engenharia, "que visa a construção de uma infraestrutura dedicada a pesquisa e desenvolvimento (P&D) em instalações modernas".

"A Finep é instituição financeira que apresenta como missão promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil por meio do fomento público à ciência, tecnologia e inovação em empresas privadas e demais setores. Por consequência tem as linhas de crédito adequadas para esse tipo de pesquisa, o que não ocorre com outras instituições financeiras", disse a empresa.

A Kyly, empresa de roupas infantis, não respondeu.

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Correção: Uma versão anterior do texto afirmava erroneamente que Luís Fernandes havia sido assessor de Aldo Rebelo na Câmara dos Deputados. O texto foi corrigido.

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