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Administrador indicado pelo BC incluiu Nike e Viagra em contas de consórcio

Um empresário fluminense acusa administradores indicados pelo Banco Central de drenar recursos de sua empresa e levá-la à falência para ser arrematada em um leilão de cartas marcadas.

Quem assumiu a empresa, a administradora de consórcios Valor, que pertencia a Daniel Freitas Tinoco de Oliveira, foi a consultoria de Gilmar José Bocalon, um administrador de Curitiba indicado pelo BC.

Bocalon incluiu na primeira prestação de contas despesas não compatíveis com o negócio, segundo documentos acessados pela reportagem.

Entre elas, "confecções" da Nike e uma caixa de sildenafil, popularmente conhecido como Viagra.

Também foram incluídas uma passagem aérea de R$ 1.745 e "despesas diversas" de R$ 404. A passagem era de Vitória para Bauru (SP), dois destinos que não têm relação com o caso — a Valor fica em Itaperuna (RJ).

Dias depois, o BC afastou Bocalon do caso — não foi dada nenhuma justificativa no ofício — e indicou outro administrador.

Segundo a assessoria de imprensa do Banco Central, Bocalon argumentou que incluiu por equívoco despesas não previstas, cujos valores foram ressarcidos.

"Não obstante, o Banco Central do Brasil decidiu pela sua substituição", afirmou.

Hoje, o consórcio está prestes a fechar as portas. No documento acessado pela reportagem, Oliveira diz que não foi informado da possível falência. Também ajuizou uma medida cautelar e procurou a corregedoria do BC.

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A advogada Daniella Adrim, que defende Oliveira, afirma que o objetivo das ações "não é discutir os motivos que levaram à liquidação extrajudicial, mas tão somente a autofalência que vem sendo forjada".

Oliveira argumenta que o negócio é viável e que não precisa fechar as portas.

Procurado, Bocalon não respondeu à reportagem.

Daniella Adrim, advogada do empresário Daniel Freitas Tinoco de Oliveira, no Rio de Janeiro
Daniella Adrim, advogada do empresário Daniel Freitas Tinoco de Oliveira, no Rio de Janeiro Imagem: Zô Guimarães/UOL

Irregularidades

Liquidação extrajudicial ocorre quando uma instituição financeira comete irregularidades ou está prestes a falir.

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Segundo o BC, a ideia é "interromper o funcionamento de uma instituição e promover sua retirada, de forma organizada, do SFN [Sistema Financeiro Nacional]".

"O objetivo é proteger os interesses dos credores e garantir a estabilidade do sistema financeiro", afirma Heidy Ávila, coordenadora do curso de direito da Estácio.

Daniel Freitas Tinoco de Oliveira diz ter sido surpreendido por servidores do BC no seu escritório, no centro de Itaperuna (RJ), na manhã de 15 de fevereiro de 2023.

Oliveira foi afastado da administração após decreto. Ele foi condenado em 2023 pelo comitê do BC a pagar multa de R$ 80 mil e está inabilitado de atuar na área por cinco anos.

Hoje, é investigado pela Polícia Federal por causa das irregularidades no consórcio apontadas pelo BC.

"Até pensei em ir embora de Itaperuna, passar um ano em Portugal. Mas decidi ficar: não queria passar qualquer impressão de que eu estava fugindo. Só quero meu negócio de volta", diz o empresário à reportagem.

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A administradora tem oito grupos de consórcios ativos e 11 mil consorciados.

Até a liquidação extrajudicial, a administradora tinha cerca de R$ 87,5 milhões de taxa de administração futura a receber, segundo análise do BC.

Trecho da prestação de contas do liquidante do consórcio Valor
Trecho da prestação de contas do liquidante do consórcio Valor Imagem: Reprodução

'Onde está o dinheiro?'

No dia do fechamento da Valor, servidores do Banco Central pregaram na porta da empresa um aviso assinado pelo presidente da instituição, Roberto Campos Neto, que decretava sua liquidação extrajudicial.

Bocalon bloqueou acessos de Oliveira e trocou as fechaduras da empresa assim que assumiu — o que é normal nesses casos.

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Liquidantes são sempre indicados pelo BC, com "o dever de administrar e liquidar os ativos da instituição de forma a maximizar o retorno aos credores", diz Heidy Ávila.

Eles devem seguir instruções da autarquia e prestar contas ao longo do processo.

O BC definiu os honorários de Bocalon em R$ 18 mil, além de R$ 6.000 de ajuda de custo por mês.

Bocalon demitiu funcionários de Oliveira, o que é normal nesses casos, e contratou Luiz Antonio Lanza, de um escritório de Sete Lagoas (MG), para prestar assistência administrativa ao consórcio, por R$ 10 mil mensais.

Oliveira conta que indagou Bocalon em uma reunião tensa na tarde de 17 de março de 2023: "Você vem aqui, assume meu negócio, pega dinheiro do meu caixa para gastar como quiser. Eu pago e não posso perguntar onde está indo o dinheiro?".

A ata da reunião, que cita a compra do Viagra, foi assinada pelo próprio Bocalon.

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Após o afastamento de Bocalon, foi indicado no seu lugar o analista Valter Guedes dos Santos.

Guedes contratou o escritório Amaral Fonseca Advogados Associados, do Rio, para dar assistência jurídica a "processos judiciais ativos e elaboração de requerimento de falência (autofalência)", segundo o contrato.

Os advogados receberam mais de R$ 48 mil em honorários em ações contra o consórcio que, ao todo, passam de R$ 1,6 milhão, informou Oliveira na notificação extrajudicial que mandou ao BC.

Para o advogado Carlos Portugal Gouvêa, sócio-fundador do PGLAW e conselheiro do CRSFN (Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional) até 2018, é comum que o antigo controlador discorde do liquidante indicado pelo BC, que está basicamente dizendo: você fez uma má administração, vamos assumir.

"É até natural. Processos de liquidação são sempre muito tensos, pois envolvem muitos interesses", diz.

Trecho do relatório do liquidante do consórcio Valor
Trecho do relatório do liquidante do consórcio Valor Imagem: Reprodução
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Prestes a falir?

Para o advogado Gustavo Licks, sócio da Licks Associados e especialista na área de insolvência, é normal que o pedido de autofalência seja à revelia do empresário.

"O pedido de autofalência não depende dos desejos dos sócios", diz.

Oliveira diz que interventores abordaram um cliente simples do consórcio Valor e um gerente da Caixa Econômica Federal em busca de informações.

O UOL confirmou o relato com o cliente Gilberto Silva e o gerente, que preferiu não se identificar — ele conta que o interventor queria transferir a conta da empresa para outro banco e ameaçou levar a Polícia Federal até a agência. No fim, a transferência não foi feita.

No relatório que mandou ao BC, Guedes diz que Oliveira "geriu fraudulentamente a administradora de consórcios".

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"Retirou recursos financeiros do capital de giro da empresa, em sucessivos saques, sob a rubrica de 'adiantamentos e antecipações salariais'", diz o documento.

Ao todo, segundo o relatório, foram R$ 4,8 milhões de transferências bancárias para a conta pessoal e para outras duas empresas em que Oliveira é sócio.

Caso do BC que inabilitou Daniel Freitas Tinoco de Oliveira
Caso do BC que inabilitou Daniel Freitas Tinoco de Oliveira Imagem: Reprodução

Players

Oliveira contesta o relatório.

"Deve ser destacado que o percentual de erro, considerando como critério o valor pago total apurado pelo liquidante, possui um percentual de erro neste relatório de 96,7%, se tornando assim, um serviço imprestável", diz o recurso que ele protocolou junto ao BC.

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O empresário diz que o consórcio foi acusado de não ter reserva financeira, o que ele nega.

"Se você é alvo de um processo de R$ 100 mil, o BC diz que a empresa precisa congelar ('provisionar') R$ 100 mil. Fui alvo de diversos pedidos de provisionamento que estavam estrangulando a empresa", conta.

Hoje, Oliveira tenta impedir a falência na Justiça.

Segundo Oliveira, Guedes e Bocalon foram gravados conversando no telefone fixo da empresa, em abril de 2023, sobre um suposto leilão da empresa com comprador combinado, sem concorrência.

"Vou conversar com um empresário pra ver se ele quer levar tudo", diz Bocalon, na gravação à qual a reportagem teve acesso.

"Levar os grupos sem concorrência", acrescenta Guedes. "O que acontece é o seguinte: o edital está pra sair, então vocês é que sabem."

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Guedes conta que a gravação feita por Oliveira é ilegal. Também diz que é comum que agentes conversem sobre casos: "As conversas travadas foram inúmeras e trataram de diversos assuntos".

Segundo Guedes, até abril de 2023, "havia natural interesse de players do mercado" na aquisição da administradora.

"No entanto, o interesse não ganhou corpo, em virtude de sérias inconsistências nos grupos de consórcio, que já apresentavam indícios de irregularidades", diz.

"Até a presente data, a administradora Valor não recebeu qualquer proposta para a aquisição de seus grupos de consórcio, provavelmente, em virtude da inconsistência dos dados."

O BC informou, via assessoria de imprensa, que o áudio integral indica a disposição de divulgar a concorrência para possíveis interessados.

"É do interesse dos grupos que o processo de transferência seja bem-sucedido e que haja outras administradoras de consórcio interessadas", afirmou.

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Se os consórcios tiverem ativos financeiros para arcar com as dívidas, o processo se encerra. Nas situações "extremas", quando a empresa não tem ativos o bastante, a única saída é a falência, diz o advogado Carlos Portugal Gouvêa.

"Quem tem a palavra final nessa análise é o Banco Central, um regulador que tem expertise e excelência. Mas o antigo controlador tem o direito de contestar a decisão judicialmente se quiser", acrescenta.

Decisão do BC que decretou liquidação extrajudicial do consórcio Valor
Decisão do BC que decretou liquidação extrajudicial do consórcio Valor Imagem: Reprodução

*Após a publicação da reportagem, Gilmar Bocalon procurou o UOL e afirmou que nunca comprou medicamentos de farmácia com o dinheiro do consórcio Valor, que pertencia a Daniel Freitas Tinoco de Oliveira. Diz que a nota "deve ter sido inserida por ele [Oliveira] na prestação de contas para desmoralizar ou tentar desmoralizar o liquidante". Bocalon afirma que Oliveira ameaçou os novos gestores, teve acesso a documentos ilegalmente e tentou atrapalhar os trabalhos deles, "com tentativas de subornos e andando com segurança armado". Segundo Bocalon, Oliveira contestou gastos que eram de autonomia do liquidante, como a compra de uma camiseta. "Um cidadão que desviou milhões de reais da empresa e dos consorciados, questionando um gasto de R$ 150, é uma piada", escreveu.

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