Governo dribla Congresso e Orçamento para dar 'mesada' a estudantes
O governo federal pagou R$ 3 bilhões para estudantes do ensino médio neste ano sem autorização do Congresso Nacional.
O procedimento contraria normas de finanças públicas.
Os beneficiários participam do programa Pé-de-Meia, que repassa R$ 200 por mês a estudantes de baixa renda durante o ensino médio como forma de evitar a evasão escolar.
O benefício é pago desde março deste ano.
A lei que criou o programa obriga o governo a enviar todos os anos para o Congresso o valor que deseja pagar como incentivo aos estudantes.
O governo chegou a vetar esse trecho da lei, mas o Congresso derrubou o veto.
Mesmo assim, o MEC (Ministério da Educação) paga o benefício aos estudantes sem que os valores constem da lei orçamentária.
O último pagamento ocorreu na semana do primeiro turno das eleições municipais.
Dados aos quais o UOL teve acesso mostram que o governo pagou R$ 658,4 milhões para 3 milhões de estudantes entre os dias 30 e 7 de outubro.
Desse total, 105.147 receberam, inclusive, mais do que a parcela de R$ 200.
Em outubro, o governo pagou até mesmo parcela referente à matrícula escolar.
A conta paralela do MEC
O UOL ouviu especialistas e professores de direito financeiro e orçamento público sobre o funcionamento do programa.
Segundo eles, como o Pé-de-Meia é uma política pública, o MEC tem que pedir autorização do Congresso para efetuar o gasto anualmente.
A manobra contraria o artigo 167 da Constituição e o artigo 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Mesmo que o Congresso não tivesse estabelecido ao Pé-de-Meia essa obrigatoriedade, duas leis anteriores determinam que a política pública deve estar prevista no orçamento ou em seus créditos adicionais.
O Bolsa Família, por exemplo, é operado dentro do orçamento da União.
O Congresso dá o aval sobre quanto deve ser reservado anualmente ao programa e fiscaliza a liberação dos repasses por meio do sistema de registro de pagamento.
A lista de beneficiários do Bolsa Família também está disponível no Portal da Transparência para qualquer pessoa fiscalizar.
Nada disso ocorre com o Pé-de-Meia.
O fundo privado
O dinheiro do Pé-de-Meia está depositado em um fundo privado na Caixa, o Fipem (Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência e Conclusão Escolar para Estudantes do Ensino Médio).
Na prática, é como se o MEC guardasse o valor em uma "conta paralela", e o ministro da Educação, Camilo Santana, fosse o único "titular". Hoje, há R$ 12 bilhões nessa conta.
Quem decide quais alunos serão contemplados em cada estado é seu ministério, a partir de dados encaminhados pelas unidades de ensino.
A legislação que criou o programa permite à União transferir recursos a esse fundo - o que ela não permite é que o pagamento dos incentivos aos estudantes com recursos depositados no Fipem se dê à margem do orçamento.
"Às vezes existe uma tendência, até na boa-fé, de tentar preservar aquele recurso para poder ser gasto depois. Você pode usar para fazer um bom gasto, como você pode também tentar tirar do regime jurídico orçamentário para fazer um mau uso do recurso sem que isso fique submetido ao sistema de fiscalização", diz José Maurício Conti, professor de direito financeiro da USP.
"Quando o recurso está dentro do orçamento você tem que seguir as regras orçamentárias para utilizá-lo. A regra é mais rígida para gasto público", completou.
Em artigo publicado em setembro na Folha de S.Paulo, o economista Marcos Mendes, do Insper, chamou a atenção para a execução de despesas fora do orçamento, como ocorre no Vale Gás e no Pé-de-Meia.
"Recursos que estejam sobrando em outros fundos, em vez de voltarem para o Tesouro, reduzindo o déficit, podem ir para o Pé-de-Meia, mantendo a despesa fora do orçamento. Coisa de R$ 5 bilhões por ano (dados de difícil acesso)", escreveu o pesquisador.
Colcha de retalhos
O Pé-de-Meia foi aprovado pelo Congresso em 20 de dezembro de 2023. Quando o presidente transformou o projeto em lei, em 17 de janeiro de 2024, os deputados e senadores já haviam aprovado a lei orçamentária.
Nesse caso, para incluir o Pé-de-Meia, o MEC teria que enviar ao Congresso um projeto de crédito adicional, o que não foi feito.
Esse tipo de medida pode ser aprovado ao longo do ano para incluir novos gastos no orçamento do ano corrente.
Falta de transparência
O MEC já recebeu inúmeros pedidos de parlamentares e por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) para abrir os dados do Pé-de-Meia. Todos foram negados até agora.
O ministério alega que os nomes dos estudantes não podem ser informados.
A pasta também não divulga quantos alunos receberam em cada mês, de onde eles são e quanto cada um recebeu.
Procurada, a Caixa também não informa.
"Em respeito à Lei nº 13.709 (LGPD), especialmente com base nos princípios de necessidade e de segurança, não é possível compartilhar dados pessoais dos beneficiários", respondeu o MEC à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara.
O artigo 16 da lei que criou o Pé-de-Meia diz, contudo, que:
"A relação dos estudantes contemplados com o incentivo financeiro-educacional de que trata esta Lei será de acesso público, divulgada em meio eletrônico e em outros meios."
Uma das condições para os alunos receberem o Pé-de-Meia é comprovar a frequência escolar de 80% — não há uma nota mínima exigida.
A um pedido de LAI, o MEC admitiu, porém, que "a condicionalidade da frequência escolar não está sendo observada nos primeiros meses de implementação da política".
Dia do pagamento
Em setembro, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) enviou um requerimento de informação para o MEC explicar qual o critério para estabelecer o calendário de pagamento do programa.
Ela é autora da lei que resultou na criação do Pé-de-Meia.
Tabata também questionou a razão de o ministério ter pulado os pagamentos do período de 5 de julho deste ano a 26 de agosto.
O ministério ainda está no prazo para enviar a resposta.
O UOL enviou ao MEC os mesmos questionamentos, mas também não houve resposta.
O que diz o MEC
O UOL tenta ouvir o MEC desde 4 de outubro sobre o Pé-de-Meia operar fora da lei orçamentária.
A assessoria da pasta pediu prorrogação de prazo duas vezes, o que foi concedido, mas mesmo assim não houve resposta.
A reportagem questionou o ministério sobre o calendário de pagamento coincidir com a semana da votação em primeiro turno eleitoral.
O MEC respondeu que "considera a viabilidade operacional, visto que, o recebimento das informações é feito através do Sistema Gestão Presente (SGP) e a habilitação dos critérios de elegibilidade do programa resulta do cruzamento dos registros administrativos dos estudantes com a base de dados do Cadastro Único".
"Além disso, os dados dos estudantes elegíveis são enviados à Caixa para abertura de conta e realização de pagamento, o que é realizado de forma automática", acrescentou.
A respeito de quantos alunos recebem o benefício, o MEC disse que "informações detalhadas estão sendo consolidadas".
A pasta afirma que é possível acompanhar dados preliminares, mas apresentou ao UOL apenas informações sobre número de estudantes elegíveis não contemplados.
A Caixa Econômica diz que "quem tem essa informação é o MEC, gestor do programa".
*colaborou Julia Affonso
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