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Do botox ao PMMA, Brasil concentra intervenções que são caso de polícia

A obsessão do brasileiro pela aparência fez cair em domínio público termos como lifting, botox, ácido hialurônico, peeling de fenol e PMMA.

Em comum, são todas intervenções não cirúrgicas que custam cada vez menos e viraram febre nas redes sociais.

O fenômeno preocupa médicos e esteticistas, que reclamam da pouca fiscalização sobre quem pode aplicar o quê.

Cada conselho de classe — medicina, odontologia, farmácia, biomedicina e estética — defende o seu. A queda de braço entre eles fez surgir um submundo de oportunistas atuando sem treinamento específico.

Em maio deste ano, um empresário morreu durante a aplicação de um peeling de fenol. Investigada por exercício ilegal de medicina, a dona da clínica disse ter aprendido o procedimento em um curso online.

A reportagem do UOL encontrou diversos desses cursos. Em uma rápida busca pela internet, é possível acessar páginas que, por R$ 1.500, prometem ensinar a aplicar botox, fazer harmonização facial e injetar bioestimulador de colágeno em até 30 horas.

Além disso, produtos ilegais e tóxicos circulam livres pelo país. As ações da Anvisa para coibir lotes clandestinos e substâncias não regulamentadas são tímidas, dizem especialistas.

Resultado: aumento das complicações no dia a dia dos consultórios.

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Imagem: Arte/UOL

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O UOL acessou mais de 40 processos judiciais, com denúncias e laudos de complicações graves, por todo o país.

Em 2022, a médica Marisa*, 32, fez um preenchimento no nariz com ácido hialurônico (rinomodelação) com um cirurgião-dentista de Mossoró (RN).

Uma artéria próxima ao olho foi atingida na aplicação, e a substância entrou na corrente sanguínea.

Segundo ela, o profissional falou que podia reverter a ação com hialuronidase, mas ele "não sabia nem se estava no prazo de validade".

Nessa hora, Marisa teve um AVC (acidente vascular cerebral) e foi levada ao hospital pela companheira. O erro a fez perder a visão do olho direito. "É uma história difícil, que agora faz parte do meu passado", disse à reportagem. O profissional segue atuando.

Marisa fez uma denúncia no Conselho Regional de Odontologia, abriu ação por danos morais e registrou um boletim de ocorrência por lesão corporal.

Os três processos estão em tramitação.

Na área criminal, a polícia indiciou o dentista por crime de lesão corporal grave.

"Temos uma máxima na área da saúde que é: não se executa um procedimento sem saber reverter. O conselho profissional o autoriza a fazer esse serviço, mas ele não soube agir. E aí, como fica?", questiona a advogada Talizy Thomás, à frente do caso.

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Imagem: Arte/UOL

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No caso da brasiliense Poliana Ferraz, 35, foi possível reverter a necrose da pele no nariz causada por preenchimento em 2022. Já as sequelas físicas, financeiras e psicológicas ficarão para o resto da vida.

Cerca de 24 horas depois de passar pelo procedimento com o que ela imaginava ser ácido hialurônico, seu nariz ficou roxo. A dor era lancinante.

"Meu nariz ficou muito preto. Estava tão mal que via tudo embaçado", conta.

Dias depois, numa consulta na clínica, descobriu que a enfermeira, por erro, tinha aplicado PMMA e não ácido hialurônico. Houve reação à substância — mais barata e com maior risco de complicação.

Poliana fez nova cirurgia bancada pela profissional responsável. O enxerto de pele na lateral esquerda do nariz parecia um band-aid, segundo ela. "Não ficou bom."

Como não consegue respirar pela narina, Poliana processou a enfermeira, pedindo que ela arque com os custos de uma nova reconstrução. "Tentei suicídio, me senti monstruosa. Mas já estive pior. Decidi lutar pela minha vida", diz Poliana.

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Imagem: Arte/UOL

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Para a servidora pública Kelly Francelino, 35, a sensação foi de ter sido iludida pelas redes sociais de uma clínica de odontologia e estética. Fotos de "antes e depois" e de resultados exitosos a convenceram.

"Pensei que o número de seguidores falava sobre a qualidade da clínica e me enganei", diz ela, que sofreu uma infecção por bactéria durante aplicação de bioestimulador de colágeno e ácido hialurônico.

Dez dias depois das injeções, notou uma bolinha dura na região do olho esquerdo. O rosto inchou e um ponto na mesma área acumulava pus. "A dentista só dizia que era normal e me passou um antibiótico."

Kelly conta que não conseguia dormir de dor e preocupação e procurou outra profissional, uma dermatologista.

Um exame identificou a infecção por uma bactéria resistente a vários antibióticos, contraída por má higiene na aplicação.

Foram seis meses de tratamento, três ciclos de antibióticos e exames constantes para monitorar uma possível sepse.

Ela processa a dentista por danos morais e materiais, e o caso foi comunicado à Vigilância Sanitária.

"Intercorrências acontecem, mas percebi a importância de procurar um profissional que saiba resolvê-las."

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Imagem: Arte/UOL

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O Brasil está em 2º lugar em procedimentos injetáveis (1,3 milhão de aplicações), atrás apenas dos EUA.

Mas, enquanto por lá houve queda de 24% desses serviços entre 2022 e 2023, por aqui houve aumento de 23%.

Dados da Polícia Federal obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que o número de apreensões de botox ilegal no país aumentou quatro vezes de 2018 a 2023.

O botox é usado no procedimento não cirúrgico mais procurado no país. Foram 571 mil aplicações em 2023, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, da sigla em inglês).

Autoridades públicas estão em alerta. Para a delegada Aline Manzatto, diretora da única Delegacia de Repressão de Crimes Contra a Saúde do país, em Curitiba, a falta de uma lei única "permite que cada conselho de classe atue como quiser, inclusive no que diz respeito à formação".

Segundo ela, casos de lesão corporal por aplicação incorreta desses produtos e por exercício ilegal da profissão aumentaram significativamente desde 2022.

Membro da diretoria global da Isaps, o médico André Cervantes define a situação como um "problema de saúde pública".

"O risco existe mesmo com profissionais experientes, mas aumenta quando o procedimento é realizado por alguém sem a devida habilidade", afirma o cirurgião plástico e educador médico Luiz Gustavo Leite de Oliveira.

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A reportagem pediu dados sobre complicações e denúncias a diversos órgãos de classe, federais e regionais.

O Conselho Regional de Odontologia de São Paulo afirmou que, só no primeiro semestre de 2024, recebeu 64 denúncias relacionadas a procedimentos estéticos. Em todo o ano de 2023, foram 79.

A Sociedade Brasileira de Toxina Botulínica e Implantes Faciais na Odontologia afirma que, embora os profissionais passem por treinamento, 6% a 7% dos procedimentos realizados por cirurgiões-dentistas apresentam complicações.

Segundo a diretora-secretária da entidade, Isabelle Albuquerque, há registros de "hematomas, necroses e até complicações mais graves, como obstrução vascular".

A Sociedade Brasileira de Estética e Cosmética afirmou, em nota, que recebe "centenas de casos semanalmente".

CFM (Conselho Federal de Medicina), CFO (Conselho Federal de Odontologia) e Conselho Federal de Biomedicina não responderam à reportagem.

A reportagem procurou o Ministério da Saúde para saber se há algum projeto da pasta para coibir o que médicos estão chamando de "problema de saúde pública".

Recebeu, em resposta, que "as informações solicitadas são de conhecimento da Anvisa e que, por isso, a demanda deve ser direcionada a eles".

A Anvisa, por sua vez, afirmou que "só é responsável pelo registro de cosméticos que podem vir a ser utilizados em procedimentos estéticos", e que não é sua incumbência "regular os procedimentos em si".

Não havendo resposta do CFO, a reportagem procurou a maior unidade regional, o Crosp (Conselho Regional de Odontologia de São Paulo).

Questionada sobre as críticas à falta de fiscalização de dentistas atuando na área da estética, a entidade afirmou que "um dos seus principais papéis é fiscalizar profissionais, clínicas e consultórios para que as normas do código de ética sejam cumpridas, a fim de resguardar a saúde dos pacientes".

Isabelle Albuquerque defende a atuação de seus pares, mas diz serem essenciais os cursos de especialização.

"O número de denúncias encaminhadas à nossa associação tem aumentado, com prevalência de profissionais de outras áreas [que não são dentistas]", afirma.

A Sociedade de Estética e Cosmética afirmou, em nota, que as denúncias que recebe se referem a "profissionais sem devida formação acadêmica em estética e cosmética".

Também criticou a maneira como o setor tem sido tratado pela opinião pública.

"O caos é negócio, e a estética no Brasil é o retrato vivo do famoso 'jeitinho brasileiro'. Os conselhos das outras profissões fingem não ver, e o governo federal finge que está tudo sob controle. O cidadão paga a conta com a vida."

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