Água no chope? Pequenas cervejarias veem mercado estagnar após 'boom'
A efervescência do mercado de cervejarias artesanais da década passada teve seu fim, dizem os principais empresários do setor.
A razão está no aumento da concorrência por parte dos grandes grupos e as recentes disparadas da taxa de juros e do dólar.
Cerca de 90% do lúpulo usado na produção nacional é importado (cerca de 5.000 toneladas).
O plantio no Brasil é considerado difícil por questões climáticas, sobretudo pela falta de clima frio.
"O malte importado, que custava R$ 6 o quilo, hoje vale quase R$ 10. Isso encarece os nossos custos", exemplifica Bruno Brito, fundador da Cervejaria Dogma.
Crescimento perde impulso ano após ano
Segundo o "Anuário da Cerveja", desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária em parceria com o Sindicerv (Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja), havia 1.847 cervejarias funcionando no país em 2023, 6,8% a mais que em 2022.
Apesar do aumento, o avanço está desacelerando — em 2019, por exemplo, o salto havia sido de 36% frente ao ano anterior.
O volume de produção declarado gira hoje em torno de 15,3 bilhões de litros.
A Abracerva, entidade das cervejarias artesanais, estima que o mercado especial represente cerca de 2% desse montante.
Com custos altos e pouco incentivo, cervejarias que fabricam entre 20 mil e 50 mil litros ao mês têm dificuldade em se expandir e disputar as gôndolas dos supermercados com as gigantes do setor.
Questão de distribuição
André Leme Cancegliero deixou o emprego de analista no banco Santander, em 2011, para fundar a Urbana, que fabrica o rótulo Gordelícia em Ribeirão Preto (SP).
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Quero receberA empresa viveu o auge em 2017, quando firmou parceria com o GPA (Grupo Pão de Açúcar), mas viu as bases do acordo mudarem no meio do processo.
"Nos prometeram cinco rótulos com 400 caixas cada um. Mas, quando fizeram o pedido, foram só 200 caixas para cada um. Ficamos com cervejas estocadas por um bom tempo", lembra Cancegliero.
Ele investiu R$ 50 mil para ampliar a produção e admite prejuízo.
A Urbana participou do 1º festival de microcervejarias do GPA, em 2017. Também houve uma tentativa de vender a granel em algumas unidades do grupo, mas a ideia não vingou.
Microprodutores reclamam da falta de projetos que garantam diversidade nos mercados e no cardápio de bares e restaurantes.
"A taxa para entrar em uma rede como o GPA é de 25%, 30% sobre o faturamento. É muita coisa. Você ainda tem que contratar repositor, ficar atento à validade do produto e às avarias. Isso dificulta", diz Gilberto Tarantino, presidente da Abracerva.
"As grandes têm um portfólio maior de marcas, o que para muitos bares resolve a necessidade de apresentar cervejas diferentes para o consumidor", diz Luiza Lugli Tolosa, sócia-proprietária da Cervejaria Dádiva de Várzea Paulista (SP), com capacidade instalada de 55 mil litros.
Ela reclama da diminuição de torneiras para cervejas artesanais nos bares.
O mercado de cerveja artesanal não conseguiu aumentar sua base de clientes e pode ter ido para um caminho que mais exclui do que inclui consumidores.
Luiza Lugli Tolosa sócia-proprietária da Cervejaria Dádiva de Várzea Paulista (SP)
'Operação de lucro zero'
No jogo de rouba-monte do setor, analistas creem que a situação econômica das famílias e a explosão do mercado de apostas online no país estão prejudicando as microcervejarias.
"Os supermercados não expõem produtos, eles vendem prateleiras. Espaços destinados para as cervejas artesanais talvez estejam sendo ocupados pelas gigantes", diz Paulo Solmucci, presidente da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).
Minha impressão é que boa parte dos consumidores migraram para as chamadas 'mainstream' com o aumento dos custos.
Pelas contas da Abrasel, mais da metade dos bares e restaurantes do Brasil estão operando sem lucro e pelo menos 25% estão no vermelho.
Isso influencia na preferência pelas grandes cervejarias.
"As grandes têm canais melhores de distribuição e relacionamento mais forte com os supermercados", diz Solmucci.
O sucesso das 'craft beers'
A cerveja artesanal, também conhecida como "craft", é feita com maior tempo de fermentação e maturação. O resultado é uma bebida de sabores geralmente mais intensos.
A Abracerva considera artesanais as cervejas com produção de até 5 milhões de litros por ano, o equivalente a cerca de 415 mil litros por mês.
"Cerveja artesanal não é mais novidade. Há dez anos, eram menos de 200 cervejarias no Brasil. Hoje são 1.800, sem contar as 'ciganas', que atuam informalmente", diz Tarantino.
Ele, que possui uma cervejaria levando seu sobrenome, está à frente de um projeto na Câmara e no Senado para reduzir os tributos sobre as microcervejarias.
A região Sul oferece vantagens a produtores.
"Metade de uma lata é formada por impostos. São Paulo não tem nenhum tipo de benefício. Os três estados do Sul têm redução de ICMS. Tentamos reduzir a carga tributária para o setor."
'Boom foi bagunçado'
Para Gustavo Barreira, sócio fundador da Companhia Brasileira de Cerveja Artesanal, as cervejarias artesanais tiveram um papel de ensinar o consumidor a "beber melhor", e as gigantes, ao perceberem isso, ampliaram sua oferta de cervejas especiais.
"O boom da última década aconteceu de forma bagunçada. Apareceram mil cervejarias em três anos, criando um mercado que não existia, mas testando modelos e errando até conseguirem se adaptar", afirma Barreira.
"Para dar certo ou você precisa ser um 'brewpub', em que você faz a própria cerveja e serve ali mesmo, ou você vira uma cervejaria grande. Ficar no limbo entre os dois modelos, onde 90% do mercado de artesanais está, é perigoso", complementa Barreira.
A CBCA nasceu a partir da fusão entre as cervejarias Leuven, de Piracicaba (SP), e Schornstein, de Pomerode (SC).
A empresa tem duas fábricas, instaladas em Itupeva (SP) e Pomerode, e produz 5 milhões de litros de cerveja por ano, com faturamento anual na casa dos R$ 70 milhões.
Ela é inspirada em cervejarias artesanais que conseguiram escala no mercado norte-americano, como Sierra Nevada, Dogfish Head e Ballast Point.
Assim como a CBCA, que cresce por meio de fusões e aquisições, muitas cervejarias foram compradas por grandes grupos do país.
A Ambev adquiriu a norte-americana Goose Island (2011) e as brasileiras Colorado (2015) e Wäls (2016).
Miguel Carneiro, fundador da Wäls, não se arrepende do negócio com a Ambev, mas mostra ter mágoa com os rumos da marca.
As decisões que eles [a Ambev] tomaram em relação a Wäls foram erradas, inclusive a de fechar o varejo da marca. Tínhamos um ateliê sensacional que foi largado por eles. Está aquele mausoléu todo parado. Me marca ver as nossas criações todas paradas. Miguel Carneiro fundador da Wäls
Seus filhos, que estavam no dia a dia da operação, viraram diretores da Ambev após a transação. Os irmãos Tiago Carneiro e José Felipe Carneiro trabalharam na companhia de 2015 a 2018.
Depois disso, a família foi para os Estados Unidos e abriu um novo negócio, a Nova Brazil, que fabrica cervejas artesanais e kombuchas (chás fermentados) em San Diego, na Califórnia.
Miguel Carneiro voltou ao Brasil durante a pandemia e deu tração à Stadt Jever, cervejaria criada a partir de um pub administrado pela família há mais de três décadas.
Ele investiu cerca de R$ 15 milhões para montá-la. A ideia é produzir rótulos norte-americanos no Brasil.
"Estamos fazendo IPA americana com lúpulo brasileiro. É uma coisa maluca. Estamos faturando por volta de R$ 20 milhões, estou bem feliz", diz ele.
As artesanais têm usado suas fábricas para produzir kombucha, cervejas sem glúten e as "low carb", além da pilsen, mais popular.
Dados globais apontam que a falta de renovação do público consumidor é mais um problema.
Pesquisas mostram que a geração Z, de nascidos entre 1995 e 2010, está consumindo menos bebidas alcoólicas.
Segundo o Relatório Covitel, realizado pela Vital Strategies e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a quantidade de jovens entre 18 e 24 anos que consomem álcool ao menos três vezes por semana caiu de 10,7% antes da pandemia para 8,1% em 2023.
"Os mais jovens não se interessam tanto por cerveja. É um problema das grandes empresas, que estão olhando para isso", afirma Bruno Brito, fundador da Cervejaria Dogma, que tem capacidade instalada de cerca de 40 mil litros por mês.
"E tem muita cervejaria entregando produto de baixa qualidade com preço alto, o que acaba sendo mais um impeditivo."
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