Cemitérios privatizados vendem modelos de túmulos vetados pela prefeitura
As empresas que assumiram a administração do serviço funerário em São Paulo adotaram práticas que não seguem o contrato de concessão.
A Cortel SP, o Grupo Maya, a Consolare e a Velar SP, atuais concessionárias, iniciaram um processo de expansão de jazigos familiares sem liberação da prefeitura.
Além disso, o UOL apurou que duas dessas empresas, a Cortel SP e o Grupo Maya, criaram uma modalidade de venda não prevista em contrato.
Se trata da cessão, por tempo indeterminado, de gavetas unitárias que deveriam atender famílias de baixa renda por até três anos.
Essa opção não existe na tabela oficial.
Para serem adotadas, essas práticas precisam de liberação da prefeitura por meio da sua agência reguladora.
A SP Regula, Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo, conhecia parcialmente a situação.
O órgão ignorava o plano das concessionárias para expansão de jazigos até ser informado pela reportagem.
"Vamos abrir um processo de fiscalização", afirmou o superintendente Gilson Luiz de Souza.
Sobre a cessão de gavetas por tempo indeterminado, a agência disse ao UOL que investiga o caso e que pretende publicar uma resolução para impedir a prática.
As concessionárias, por sua vez, negam descumprir o contrato.
Em entrevista exclusiva, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que o serviço funerário agora é um negócio.
"E esse negócio fica bom quando é bom para o poder público e para o privado. O cara não vai fazer uma doação, ele vai fazer um investimento para poder ter o retorno", disse.
Multa para gaveta "eterna"
A venda das gavetas por tempo indeterminado está disponível em pelo menos quatro cemitérios: Campo Grande (zona sul), Saudade (zona leste), Dom Bosco e Vila Nova Cachoeirinha (ambos na zona norte).
Os preços variam de R$ 5 mil a R$ 15 mil e podem ser parcelados em até 60 vezes.
A construção de gavetas unitárias é permitida no contrato que concedeu a gestão dos 22 cemitérios municipais à iniciativa privada.
O detalhe é que esse modelo tem como finalidade exclusiva substituir os enterros feitos em terra e não funcionar como um jazigo permanente.
Segundo a SP Regula, as empresas terão de cancelar o serviço e devolver o pagamento aos clientes, além de arcar com multas.
Cemitérios verticais
Cortel SP e o Grupo Maya administram cinco cemitérios cada.
Ambos começaram a construir estruturas verticais para ampliar a oferta de gavetas individuais para uso imediato e futuro.
No Cemitério Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, já são 3.600 sepulturas desse tipo.
Nesse local, cada gaveta é negociada por R$ 5 mil, mesmo preço praticado no cemitério Dom Bosco.
A Cortel SP não informou quantas delas foram vendidas a prazo indeterminado.
Já o Grupo Maya chega a cobrar R$ 15 mil por uma sepultura no cemitério vertical em construção no cemitério Campo Grande.
A empresa também não respondeu quantas vendas fez sem o aval da prefeitura.
Ao longo das últimas duas semanas, a reportagem visitou cemitérios de ambas as concessionárias e presenciou a construção acelerada das estruturas verticais.
No cemitério Dom Bosco, por exemplo, 24 'prédios de cinco andares' já estão prontos para uso imediato ou futuro.
Como são iguais, não é possível saber quais gavetas foram cedidas de forma regular, ou seja, pelo prazo de três anos ao preço tabelado de R$ 275,28.
Pelos canais de venda, as equipes das empresas informam aos interessados que a compra é definitiva.
"Você se tornará proprietário de um bem perpétuo. Antecipe-se e cuide de quem você ama com mais tranquilidade e segurança", anunciam sobre as gavetas individuais.
A compra ainda pode ser acompanhada de um plano funerário ou de um combo de duas gavetas com desconto.
A SP Regula afirma que sabe da irregularidade há cerca de um mês, mas admite que o processo de notificação e multa ainda está em curso.
"As concessionárias têm o direito de se defender", argumentou o superintendente Souza.
Mas, segundo ele, todas as vendas nesse modelo terão de ser canceladas e o dinheiro empregado pelas famílias, devolvido.
"E aplicaremos as multas cabíveis, que podem chegar a R$ 48 mil por caso", afirma.
Até esta quinta-feira (26), as opções seguem à venda pela internet, telefone e balcão presencial.
Porcelanato nos novos jazigos
O prazo para a conclusão da reforma dos cemitérios e áreas de velório termina apenas em 2027, mas a expansão de jazigos começou já neste ano.
O objetivo das concessionárias é ampliar as chamadas receitas acessórias.
No cemitério Santana, na zona norte, a Consolare vende túmulos novos por R$ 35 mil.
O valor é referente a um jazigo de 1,60m x 2,2m, que fica pronto em 180 dias.
Além de não autorizado, o negócio supera em 110% o valor da tabela para concessões de terreno a prazo indeterminado.
De acordo com o contrato, o metro quadrado do terreno nos cemitérios classificados como "grupo 2", como o de Santana, deve ser negociado a R$ 4.722,00.
Na proposta da concessionária, no entanto, ele chega a R$ 10 mil.
A diferença, segundo indica a vendedora consultada pela reportagem, está no acabamento, feito em porcelanato.
A SP Regula afirmou ao UOL que vai abrir um processo de fiscalização para checar as condições de construção e venda de novos jazigos.
A ampliação depende de autorização específica da agência e do cumprimento de uma série de contrapartidas, inclusive de caráter ambiental.
O superintendente de fiscalização, Gilson Luiz de Souza, disse que, nesses casos, 20% da área construída deveria ser permeável. "Aquilo é patrimônio público. As normas seguem aplicáveis e essa é uma delas."
Concessionárias afirmam seguir contrato
A Consolare e a Velar SP afirmaram que seguem rigorosamente as determinações previstas no contrato de concessão.
As empresas não responderam se receberam autorização específica do município para a venda de jazigos novos e quantos já foram comercializados.
Já a Cortel SP confirmou que vende gavetas unitárias por tempo indeterminado "em benefício de maior comodidade do cliente, uma vez que o edital prevê a liberdade para a concessionária criar novos produtos".
Em nota, o Grupo Maya afirmou que a comercialização de jazigos novos e gavetas unitárias está prevista na cláusula 9.2, do anexo XI do contrato, e também no anexo que define a política tarifária a ser praticada.
O texto estabelece que as "concessionárias poderão explorar, dentro do conjunto de serviços funerários, a cessão de terrenos, gavetas e ossuários por prazo fixo ou indeterminado".
Já o anexo da política tarifária permite a venda de gavetas adicionais - não unitárias - para o caso de as famílias desejarem ampliar o jazigo que possuem. E mesmo assim pelo preço fixo de R$ 943.
"Uma das características dos jazigos permanentes é o fato de ele ser familiar. Como então é possível fazer isso em relação às gavetas? Como se coloca uma família em apenas uma gaveta?", questiona Gilson Luiz de Souza, que é enfático sobre a proibição.
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