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Lula retoma demarcações, mas não freia 'boiadas' e ataques contra indígenas

Lideranças indígenas avaliam que a primeira metade do governo Lula (PT) foi um misto de conquistas e frustrações. Por um lado, o país retomou as demarcações de terras e amenizou crises em regiões invadidas pelo crime ambiental. Os movimentos pedem, no entanto, que o Executivo se empenhe mais para conter a violência nos territórios e defender direitos dos indígenas no Congresso.

Raio X

O governo regularizou 13 terras indígenas em dois anos. Isso significou a volta das demarcações, que foram paralisadas na gestão de Jair Bolsonaro (PL), mas o número decepcionou entidades. A oficialização dessas terras já era prevista no início do mandato, porque não havia pendências burocráticas sobre elas. Ou seja, Lula não foi além do mínimo esperado.

Houve avanços no combate às invasões de terras indígenas. Por meio de forças-tarefa com órgãos ambientais e policiais, o governo vem retirando garimpeiros, madeireiros e pecuaristas de sete territórios na Amazônia. As medidas atenuaram crises humanitárias, como a do povo Yanomami, mas o governo só tem atuado nas áreas em que foi obrigado por decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).

Lideranças afirmam que outras regiões também foram invadidas, mas não estão protegidas. É o caso da terra indígena Urubu Branco, em Confresa (MT). Em setembro passado, o MPF (Ministério Público Federal) pediu à Justiça medidas urgentes para expulsão de grileiros do território, mas não há ação policial do governo na região. Procurado pelo UOL, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que as operações de desintrusão, como são chamadas, só podem ocorrer "mediante solicitação formal das autoridades competentes", o que não teria ocorrido até o momento.

Povos indígenas têm sofrido ataques armados. O governo mantém, atualmente, equipes da Força Nacional em quase 30 territórios (ver infográfico abaixo). Na maioria dos casos, a função dos agentes é conter picos de violência em disputas por terras que os indígenas reivindicam, mas que ainda estão com demarcação em andamento.

Assassinatos cresceram no primeiro ano sob Lula. Segundo o relatório "Violência contra os Povos Indígenas", publicado anualmente pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), 208 indígenas foram mortos em 2023, 15% a mais que no ano anterior. Ainda não foi publicado o relatório de 2024, e o governo não tem números oficiais.

Indígenas tiveram derrotas no Congresso. A principal foi a lei do marco temporal, que tira deles o direito a terras que não habitavam à época da Constituição de 1988. A lei foi aprovada no final de 2023, mesmo após o STF declará-la inconstitucional, e o Senado analisa uma PEC com a mesma tese. Na Câmara, a oposição reuniu assinaturas para pedir uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre os processos de uso e demarcação de terras, o que pode ocorrer em 2025.

Está faltando mais determinação política ao Executivo para proteger os direitos dos povos indígenas. Sem dúvida, o cenário é diferente do governo anterior, porque existe diálogo e o ambiente é de muito mais respeito e democracia. Mas como isso chega na ponta? Como isso tem se traduzido em melhores condições para os povos indígenas?
Luis Ventura, secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário)

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O que explica a situação

As demarcações enfrentam barreiras de Congresso, estados e agronegócio. Em abril passado, o governo preparou um evento para homologar seis terras indígenas, mas demarcou apenas duas, em uma decisão de última hora. Na cerimônia, Lula disse que o recuo era um pedido de governadores, inclusive aliados, porque ainda havia agricultores morando naquelas áreas. Dos quatro territórios excluídos, três acabaram demarcados em dezembro, mas um continua pendente.

Além das 13 terras demarcadas, o governo deixou outras 11 próximas da regularização. Em setembro e outubro do ano passado, essas áreas receberam a portaria declaratória do Ministério da Justiça, o penúltimo passo para a consolidação. Ao assumir o governo, Lula havia dado ao Ministério dos Povos Indígenas a função de declarar as terras, mas o Congresso deslocou essa tarefa para a pasta da Justiça. A medida esvaziou os poderes da ministra Sonia Guajajara (PSOL).

A lei do marco temporal tem atrasado as demarcações. No início de 2024, cinco partidos e a AGU (Advocacia-Geral da União) pediram ao STF a derrubada do texto, alegando que ele fere o que o próprio tribunal havia decidido. O Supremo, porém, não invalidou a lei. Em vez disso, abriu uma série de audiências de conciliação, que vão continuar em 2025. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), maior entidade indígena do país, se retirou dos debates com o argumento de que direitos assegurados não se negociam.

O atraso tem provocado insegurança jurídica e estimulado a violência. O Tekoha Guasu Guavirá, um território no oeste do Paraná, sofreu uma série de ataques armados na virada do ano, com seis indígenas feridos. A área é reivindicada por cerca de 2.000 famílias Avá-Guarani, espalhadas por 19 aldeias, mas a maioria está em terras que, no papel, pertencem a fazendeiros da região. O processo de demarcação está paralisado desde 2023 por ordem do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região).

Os indígenas relatam condições precárias, truculência e racismo. O líder Ilson Okaju, que representa a comunidade, afirmou ao UOL que boa parte das famílias vive em casas de pau-a-pique ou barracos construídos com material reciclável, porque a insegurança no território impede melhorias na infraestrutura. Isso se reflete, segundo ele, na falta de saneamento básico, escolas indígenas e postos de saúde. Okaju afirma que a maioria dos moradores tem dificuldade de conseguir empregos estáveis, e as crianças são hostilizadas em escolas onde convivem com a população local, em Guaíra (PR) e Terra Roxa (PR).

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Nas escolas, crianças falam que 'índio bom é índio morto'. Isso é uma das coisas que, nos últimos anos, fez com que o suicídio virasse uma epidemia entre jovens indígenas. Essa falta de perspectiva, de esperança de estudar, se formar e trabalhar, é perpetuada por causa do preconceito nas cidades, que se reflete até nas crianças em idade escolar
Ilson Okaju, representante da CGY (Comissão Guarani Yvyrupa) no Tekoha Guasu Guavirá

Os próximos passos

Segundo dados da Funai, o Brasil tem hoje 302 territórios indígenas à espera de regularização. São 120 terras que já iniciaram o trâmite de demarcação, outras 153 em estudo e seis que estão sob interdição, por abrigarem povos isolados. Também entram na conta pendências em 23 reservas indígenas —que não são áreas tradicionalmente ocupadas, e sim terras que foram doadas ou vendidas à União para acomodar um grupo específico (entenda como funciona a demarcação).

A União apelou para a indenização em um dos casos. Por meio de um acordo costurado pelo STF em setembro passado, o governo aceitou pagar um total de R$ 144,8 milhões a 12 fazendeiros para encerrar um conflito no território Ñande Ru Marangatu, em Antônio João (MS). O documento foi assinado uma semana depois de Nery da Silva Guarani Kaiowá, de 23 anos, ser morto pela Polícia Militar com um tiro na cabeça durante uma tentativa de retirar os indígenas de uma fazenda ocupada por eles. Essa terra estava homologada desde 2005, mas os produtores rurais nunca havia saído dela.

Entidades desaprovam o acordo. A principal crítica é que as indenizações cobriram não apenas as benfeitorias na área, mas também o valor da terra nua, algo que não está previsto nem sequer na lei do marco temporal, idealizada pelos ruralistas. Para Luis Ventura, do Cimi, isso cria um precedente perigoso não só pelo alto custo, mas porque pode acirrar outros conflitos por terra em situações semelhantes. "Essa medida é arriscada, porque gera expectativa de direitos não previstos em lei por parte de pessoas que violentaram e até assassinaram indígenas", diz.

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A agenda contrária aos indígenas deverá retornar ao Congresso. Tramita no Senado uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para colocar a tese do marco temporal no texto constitucional, e não apenas na lei, como é hoje. Esse projeto chegou a ser pautado para votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) em julho do ano passado, mas acabou adiado.

Procurado pelo UOL, o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou até a publicação deste texto.

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