'Pedaço de carne': como mulheres que denunciam assédio adoecem nas polícias
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Uma escrivã da Polícia Civil de Buritizeiro (MG) desmaiou no banheiro da delegacia após usar remédios controlados para lidar com distúrbios psiquiátricos.
Após ouvir o delegado dizer que ela "ficaria uma delícia com a arma na cintura usando só calcinha e sutiã", uma investigadora em Assis (SP) passou a usar roupas masculinizadas e engordou mais de 40 kg para escapar do assediador.
São histórias que fazem parte de um levantamento inédito feito pelo UOL, que analisou sindicâncias, inquéritos e processos na Justiça após denúncias de crimes sexuais nas forças de segurança do país.
Foram identificados 41 agentes que passaram por tratamento psicológico ou psiquiátrico. Ao menos 27 relataram ter sofrido perseguição institucional.
E há seis episódios em que as pessoas responsáveis pela denúncia foram acusadas de injúria ou difamação, em casos marcados pela chamada "blindagem institucional".
Procurada, a Polícia Civil de Minas Gerais disse que todas as denúncias são apuradas pela corregedoria.
Já a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo) disse não compactuar com qualquer tipo de desvio dos seus agentes e reforça que a corregedoria da instituição está aberta para investigar denúncias de eventuais crimes cometidos por seus agentes.

Sem investigação, denúncia foi arquivada
Citada no começo da reportagem, a escrivã Juliana* disse que começou a sofrer em 2016 com as investidas de um colega de trabalho na delegacia de Buritizeiro (MG), a 350 km da capital Belo Horizonte. Na época, tinha 28 anos.
"Ele dizia que eu era muito bonita. Falava para eu largar do meu noivo para ficar com ele."
A escrivã disse ter levado três anos para denunciar os casos de assédio sexual e de assédio moral, com difamações e ironias sobre o seu trabalho após rejeitar as abordagens do colega.
Mas a investigação não avançou. O caso prescreveu após dois anos sem que sequer fosse investigado.
Isso ocorreu em novembro de 2021, quando a corregedoria da Polícia Civil de Minas Gerais arquivou um procedimento por prescrição.
O UOL teve acesso aos arquivos da sindicância, verificando que a corregedoria ouviu a vítima, quatro testemunhas e o investigador acusado de assédio.
Não houve sequência à investigação, mas as sequelas emocionais persistiram, fazendo com que a vítima intensificasse o uso de medicamentos para tratar de crises de ansiedade e de pânico.
Em janeiro deste ano, ela foi encontrada desacordada no banheiro da delegacia. Acabou sendo internada por três dias na ala psiquiátrica de um hospital da Polícia Civil. Lá, relatou um novo caso de abuso.
Desta vez, cometido por um médico legista, alvo de investigação conduzida pela própria Polícia Civil por assédio sexual.
Segundo a denúncia, o acusado ficava alisando seus braços, rosto e cabelos. Em algumas ocasiões, ela o acusou de tentar beijá-la.
O investigador acusado de assédio sexual e moral contra Juliana no caso que prescreveu negou as acusações.
O médico legista investigado por assédio sexual pela Polícia Civil também alegou inocência.

'Loucas e problemáticas'
Em outro caso ocorrido em Minas Gerais, Jaqueline Evangelista Rodrigues, investigadora da Polícia Civil, denunciou o colega Geraldo Modesto Brum por importunação sexual em uma operação policial em fevereiro de 2020.
"E agora? O que a gente vai fazer para comemorar o sucesso da operação? Você vai me dar um beijo, um abraço ou vai me dar outra coisa?", teria dito Geraldo, segundo a denúncia feita pela agente.
No dia seguinte, ele a segurou por trás na delegacia onde atuavam em Belo Horizonte, segundo a versão de Jaqueline.
Assustada, ela deixou o café cair no chão e acabou sendo ajudada por uma funcionária da delegacia. Contudo, em depoimento, essa testemunha disse só ter chegado ao local depois e não presenciou o assédio sexual relatado pela vítima.
Jaqueline só decidiu denunciar após ser informada que Geraldo assumiria a chefia da sua equipe, quatro meses depois.
Eu comecei a chorar na hora. Falei que não teria condições de continuar naquela delegacia. Ali, eu era um pedaço de carne, e ele poderia fazer o que quisesse. Jaqueline Rodrigues policial civil
Com depressão, estresse pós-traumático e transtorno de ansiedade, ela ficará afastada até o fim de julho, quando passará por nova perícia para avaliar as suas condições psicológicas e psiquiátricas.
Já Geraldo Modesto Brum, condenado a 1 ano e 2 meses pelo Tribunal de Justiça de Minas por importunação sexual, segue trabalhando. Ele ainda pode recorrer da decisão.
O advogado Thiago Sellera, que representa o investigador, diz que ele é inocente e responsabiliza a vítima pela denúncia.
Ela é uma pessoa problemática, que está assumindo uma versão de vitimismo. A defesa entende que, em crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima tem força de prova por ser crime que não se pratica na frente de testemunha. Porém, não há lógica nos fatos que ela narra. O que ela busca é holofote. Thiago Sellera advogado de Geraldo
A versão do defensor coincide com o relato das próprias vítimas sobre a forma como acabam sendo tratadas durante o processo.
"Somos rotuladas como loucas e problemáticas. Enquanto isso, os abusadores seguem com as suas vidas normalmente", disse Juliana, a outra policial civil entrevistada pelo UOL.

Militarização e hierarquia
Na PM, os relatos de blindagem aos denunciados têm outros componentes, como a militarização do próprio Judiciário e uma cultura de endurecimento excessivo no respeito à hierarquia.
Foi o que ocorreu com a ex-soldado Jessica Paulo do Nascimento. Ela levou três anos para denunciar o coronel Cássio Pereira Novaes, que chefiava um batalhão da PM na zona sul de São Paulo. O caso escalou do assédio sexual a ameaças de estupro e até de assassinato.
Ela disse ter sido assediada pela primeira vez em 2018, quando se preparava para fazer o café no batalhão.
"Nossa! Que rabo gostoso você tem", teria dito o coronel.
Mesmo relatando ter ficado em estado de choque após o assédio, ela ainda contou ter prestado continência para se retirar do local, em respeito à hierarquia militar.
E só se permitiu chorar ao chegar no alojamento.
Antes do meu horário de saída, ele pediu ao capitão para me chamar, porque queria falar comigo de maneira reservada. Eu lembro que eu tremia, com medo do que poderia acontecer. Ele apenas disse, em tom de ameaça: 'Olha, fica esperta se você quiser se dar bem aqui. Se tentar me prejudicar, vou transformar a sua vida em um inferno'. Jessica Paulo do Nascimento ex-PM
Em agosto de 2018, a policial militar tirou seis meses de licença devido aos distúrbios psicológicos. Em seguida, ficou afastada por dois anos de licença, só retornando à corporação em março de 2021.
Mesmo após o longo período sem contato, ela disse que o coronel Cássio voltou a assediá-la quando ela voltou à PM, incluindo mensagens pelo WhatsApp com convites para levá-la a um motel. Foi então que ela decidiu denunciá-lo à corregedoria.
O coronel Cássio Novaes foi condenado na Justiça a 1 ano e 5 meses em regime aberto. Mas Jessica ainda convive com os distúrbios psiquiátricos causados pelo assédio sexual.
Passei a usar remédios para dormir. Eu estava com medo, tinha pesadelos com o meu assediador. Em maio de 2021, pedi demissão da PM pela perseguição que estava sofrendo. Quando fiz a denúncia, o meu assediador foi afastado. Mas, ainda assim, conseguiu se aposentar.
Jessica Paulo do Nascimento
Procurada, a defesa do oficial alega inocência e diz que as mensagens de WhatsApp foram tiradas de contexto.
"O coronel Novaes continua lutando para provar a sua inocência e aguarda decisões das cortes superiores", disse o advogado Mauro Ribas.
Vítimas silenciadas
Especialista em terapia cognitiva e comportamental, o psicólogo Eliton José França disse que os assediadores costumam tirar proveito da superioridade hierárquica para cometer o crime.
"Para piorar esse cenário, ainda há uma dúvida incentivada pela própria instituição, que causa ainda mais sofrimento à vítima".
A psicóloga Caroline Mochnacs de Arruda diz que as instituições policiais silenciam as vítimas de crimes sexuais. Um cenário que pode levar até mesmo ao suicídio em casos mais extremos.
"Quando elas enfim relatam o assédio sexual, elas são desencorajadas dentro da instituição. Isso faz com que elas questionem o que realmente aconteceu e entrem nesse ciclo de silenciamento. Elas acabam se sentindo culpadas por terem sofrido essa violência", diz a psicóloga, que atende vítimas de violência sexual nas forças de segurança.

Pressão contra denúncia
Uma policial militar de um batalhão em Ponta Grossa (PR) disse ter sido vítima de assédio sexual cometido por um capitão, que sentou ao seu lado e começou a acariciar a sua coxa. O caso ocorreu em 2021.
"Eu tirei a mão dele, demonstrando nojo. Eu saí tão abalada que abracei um colega e contei o que tinha acontecido, chorando. Ele só falou: 'Você é mulher, e ninguém vai acreditar em você. Pense bem no que vai fazer'", disse.
Após denunciar o caso, Andreia* disse que o comandante do batalhão tentou convencê-la a não levar o caso adiante, dizendo que o abusador sofria de depressão e que estava arrependido.
Segundo ela, o inquérito policial militar foi conduzido por um amigo do acusado, que se limitou a reproduzir o seu relato, ignorando as testemunhas.
Após concluída a apuração, a Justiça Militar pediu o arquivamento por falta de provas.
Foi então que Andréia decidiu levar o caso à Assembleia Legislativa paranaense.
Depois disso, a PM reconheceu o assédio, mas apenas no âmbito administrativo. O capitão foi transferido para outro batalhão. E, um ano depois, pediu para se aposentar. A PM ainda emitiu boletim de elogio para esse assediador pelos serviços prestados à corporação.
Andréia PM do Paraná
Abalada, passou a usar calmantes. E foi só após ver um desenho da filha no chão de casa que desistiu de cometer suicídio e encontrou forças para seguir em frente.
Procurada, a PM paranaense não se posicionou sobre o caso.
*nomes alterados para proteger a identidade das vítimas
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