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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Um show sem 'Fora, Bolsonaro' e uma festa da oposição de verde-amarelo

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao lado do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante o desfile militar para comemorar o bicentenário da independência do Brasil, em Brasília - Mateus Bonomi/Mateus Bonomi/AGIF
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao lado do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante o desfile militar para comemorar o bicentenário da independência do Brasil, em Brasília Imagem: Mateus Bonomi/Mateus Bonomi/AGIF

Colunista do UOL

10/09/2022 04h01

Este texto é parte da versão online da newsletter de Daniela Pinheiro, enviada ontem (9). Na newsletter completa (apenas para assinantes), a colunista fala mais sobre a imagem do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e sobre a morte da rainha Elizabeth 2ª. Quer receber o conteúdo completo na semana que vem, por e-mail, com a coluna principal e informações extras? Clique aqui e se cadastre.

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A três dias do bicentenário da Independência do Brasil, um coquetel do Fórum de Integração Brasil Europa — mais um evento da lavra do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em Portugal — reuniu locais e patrícios na cobertura de um teatro no centro de Lisboa. A festinha era restrita a um grupo de convidados escolhidos a dedo que, pouco antes, tinha tido o privilégio de assistir a um concerto intimista do violonista brasileiro Yamandu Costa e do músico-sensação português António Zambujo. (Novidade: ninguém gritou "Fora, Bolsonaro"). Um dos organizadores do evento, o economista José Roberto Afonso, exibia olheiras profundas causadas, sobretudo, pelo assédio sofrido por conhecidos e desconhecidos atrás de bilhetes "cortesia". Nos dias seguintes, o fórum promoveria debates sobre a relação Brasil-Portugal no âmbito da cultura e do atual contexto geopolítico mundial.

Por volta das 20h30, rodinhas de conversas haviam se formado pelo salão, que era percorrido por garçons (a maioria brasileiros) a servir vinho, água, suco e petiscos regionais — como dadinhos de tapioca e trouxinhas de camarão com dendê. Havia diplomatas, juristas, empresários, políticos locais, ex-assessores palacianos, representantes de entidades de classe (a dos bancos, bien sûr) e alguns palestrantes — caso do ex-ministro Henrique Meirelles e de Winston Fritsch, um dos pais do Plano Real. E muita gente do Banco do Brasil, de gerentes a funcionários da agência de Lisboa.

Em um dos grupos mais politizados, cuja experiência de todos na vida pública deve somar pelo menos uns 180 anos, o assunto era os evangélicos. Havia o consenso de que se tornaram a maior força política do Brasil e que estavam em peso ao lado de Bolsonaro. Todos se diziam estupefatos com o fato de o governador do Rio, Cláudio Castro, um ex-cantor gospel, cujo candidato a vice foi preso por corrupção, estar à frente das pesquisas eleitorais rumo à reeleição. Um deles contou ter chegado aos seus ouvidos, com detalhes arrepiantes, a parceria entre um mercurial pastor evangélico e um dos traficantes mais poderosos do estado. Era uma sociedade escancarada e profícua. Também foi citada a medida, publicada recentemente pelo governo, que isenta o salário de pastores e integrantes de congregações religiosas do pagamento de impostos. Quando confrontado sobre por que esse tipo de aberração não se resolve no país, ele explicou que "é um assunto em que ninguém quer mesmo se meter".

Depois, emendou-se uma conversa de como as igrejas evangélicas haviam substituído, de certa maneira, o que seria a função do serviço consular em países com alta imigração brasileira — como Portugal e Estados Unidos. Comentou-se que, enquanto boa parte do corpo diplomático gasta tempo organizando eventos culturais inúteis, os pastores costumam oferecer aos imigrantes ilegais uma estrutura mínima para que comecem uma nova vida no estrangeiro, o que faz com que sejam ainda mais fiéis à causa.

Por se tratar de um ambiente cheio de tucanos ou simpatizantes, Geraldo Alckmin também teve protagonismo nas conversas. Para um grupo, o papel irrelevante do vice de Lula já ficou provado — com o que nem todos os presentes concordaram. O convidado reforçou sua tese: "O Lula fracassou na construção de uma frente ampla com outros partidos que pudessem de fato ajudá-lo. O Geraldo não traz nada, nada para o Lula", disse. Em sua opinião, o vice de Lula tinha se "magoado" com o partido, com o ex-governador João Doria (que tripudiou com o fato de ele ter ficado em quarto lugar nas eleições de 2018, o que provaria que o PSDB estava perdido) e que fechou com o PT por "birra". Todos ainda achavam "muito estranho" vê-lo de boné vermelho, fazendo o "L" com indicador e o polegar nas fotos. "Frente Ampla com nanico é piada. Por que não procurou o PSDB?", conjecturou.

Quando uma garçonete se aproximou para oferecer picadinho com farofa de banana num potinho, alguém arriscava o palpite de que Ciro Gomes poderia estar de olho no capital político de direita, que ficará à deriva, caso Bolsonaro perca a eleição. Daí, a insistência em bater tanto em Lula e manter ataques higiênicos ao governo atual. Ninguém concordou.

Entretanto, vieram à tona comentários sobre o último debate eleitoral, quando nenhuma palavra foi dita sobre o que se chamou de "o maior escândalo de corrupção recente do país", o Orçamento Secreto. Um dos convivas, com vasta experiência na burocracia do Congresso Nacional, disse que a medida não passava de uma versão 2.0 do escândalo dos Anões do Orçamento, ocorrido em 1993, no qual políticos manipularam emendas parlamentares com o objetivo de desviar dinheiro através de entidades sociais fantasmas ou com a ajuda de empreiteiras. Naquele caso, quase todo mundo foi preso, perdeu o mandato, foi varrido da vida pública para sempre. No caso atual, todos duvidaram de que algo parecido pudesse ocorrer.

Em algum momento, foi feita uma alusão à relação do bolsonarismo com o nazismo. Um alto funcionário do Itamaraty comentou ter visitado o Luftbrückendenkmal — o Memorial da Ponte Aérea, em Berlim — e ter ficado impressionado com o que lá viu. "Os alemães gastaram muito tempo pensando na 'desnazificação' da nação, até porque logo depois da guerra não se sabia se o nazismo perduraria ou não", disse à pequena plateia atenta. No museu, ele contou, explicam-se as estratégias, que incluíam palestras para a população, mudança de currículo escolar para se contextualizar o horror tocado por Hitler, o compromisso da imprensa em mostrar os crimes de guerra, até que toda sociedade percebesse as atrocidades cometidas, e desaparecesse toda e qualquer influência nazista. "Conseguiram, ma non troppo". Ele disse achar interessante se pensar na mesma estratégia para o Brasil para que se tente "voltar a um pouco da normalidade de antes".

Aproximou-se Yamandu Costa, com um copo de vinho na mão, simpático, que recebeu parabéns calorosos e discorreu sobre seu amor por Lisboa — para onde se mudou definitivamente. Agradeceu o convite e pulou de rodinha.

Como se tratava de um ambiente cheio de jurisconsultos, falou-se da Proposta de Emenda Constitucional que aumenta de 11 para 15 o número de ministros do STF. Não é nova. Foi apresentada em 2013 pela então deputada Luiza Erundina, do PSOL, mas só foi tirada da gaveta por Bolsonaro. Para um entendido no assunto, tem muita chance de ser aprovada. Primeiro, porque agrada a muitos setores da Justiça: os advogados, o Ministério Público, os tribunais superiores, todo mundo com olho grande. Mas, sobretudo, aos parlamentares, que podem para fazer nomeações e obter cargos influentes, já que a proposta também altera a competência e a forma de nomeação dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Foi feita a sugestão para que o grupo assistisse ao documentário "Doze Moedas", da HBO, que conta os bastidores do jogo da política monetária no Brasil. O país mudou de moeda 12 vezes desde 1822. Há fatos curiosos como o depoimento de Fernando Henrique Cardoso dizendo que só soube ter virado ministro da Fazenda de Itamar Franco pelo Diário Oficial ou revivals de Zélia Cardoso de Mello tentando explicar o Plano Collor. "São tantos episódios surreais que se você colocasse as histórias como sendo ficção iam achar que era exagerado. No Brasil, a realidade engole a ficção", disse aquele que havia assistido. Havia quem já estivesse traçando o terceiro potinho de picadinho, e os prognósticos políticos eram que Lula ganhava, que Bolsonaro vai querer melar o resultado, e que tudo se passará normalmente. Nada mais foi dito ou perguntado.

Três dias depois, na quarta-feira (7), quando se comemorava a Independência do Brasil, do outro lado do Atlântico tratores e tanques desfilavam pela Praça dos Três Poderes, Bolsonaro exaltava seu desempenho sexual, cometia crime eleitoral ao usar a cerimônia como palanque eleitoral e constrangia o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, que ficou eternizado nas fotos dos 200 anos ao lado do "Véio da Havan", enquanto uma turma moderninha ligada às artes se reunia na livraria Ler Devagar em Lisboa.

À guisa das comemorações da efeméride, um evento cultural prometia reunir nomes influentes para debates e leituras. Houve apresentação de uma dupla de músicos de Minas Gerais, vídeos de bailarinos do Piauí, exposição e venda de camisetas canarinhas da seleção de futebol com nomes de orixás, fotos de uma mulher pelada com máscara de gás, intervenções gráficas verde-amarelo em fotos de artistas e celebridades, falas inflamadas sobre "o genocida", "o fascista", muitos "Fora, Bolsonaro", chope de boa qualidade, petiscos nacionais e uma novidade: a oposição voltando a se vestir de verde-amarelo. Uma moça que ostentava o figurino me disse que era hora "de tomarmos de volta os nossos símbolos". Uma outra, também usando as cores da bandeira, trazia na cabeça um boné vermelho com os dizeres: "Lula presidente. Gostoso demais".

O dia acabou no Brasil com as imagens da praia de Copacabana apinhada de apoiantes do presidente, do ônibus com moradores xingando bolsonaristas de motocicleta, do vídeo de Bolsonaro brigando com Michelle para que ela saia do carro, do coro do "imbrochável", das vaias ensurdecedoras no jogo do Flamengo. Quase nada foi falado sobre o bicentenário. E não houve golpe nenhum.

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