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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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'Aquilo quebra!', diz monarquista sobre pote com o coração de D. Pedro 1º

José Bouza Serrano, embaixador português e estudioso das monarquias - Divulgação
José Bouza Serrano, embaixador português e estudioso das monarquias
Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

20/08/2022 04h01

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'Se algo acontecer, é a verdadeira crise diplomática'

Desembarca em solo nacional, na alvorada da segunda-feira (22), o coração de D. Pedro 1º (ou D. Pedro 4º, como é chamado em Portugal), mantido em um pote de vidro, imerso numa substância dourada — o que, de longe, poderia passar por uma bela conserva de foie gras —, no âmbito das comemorações do bicentenário da Independência do Brasil. Chega em Brasília em voo fretado pela Força Aérea Brasileira, proveniente da cidade do Porto, escoltado por autoridades e diplomatas portugueses.

Em maio, o governo brasileiro pediu emprestado o coração para ser exposto a visitantes durante a Semana da Pátria. Depois de inspeções e perícias técnicas, a Câmara do Porto - cidade escolhida pelo imperador em testamento para abrigar a relíquia - autorizou. A esquerda chiou. Acusou Bolsonaro de querer fazer proselitismo, denunciou o uso político do que seria uma iniciativa "quase mórbida", algo que "ninguém vai querer ver" porque "não deve ser bonito", nas palavras de Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff.

É a primeira vez que o coração, que boia em formol há 188 anos, deixa a fortaleza em que é mantido em Portugal. No entanto, quem se interessa ou está envolvido com o traslado e exposição do órgão no Brasil não está nem aí com sua influência nas próximas eleições ou quanto o capricho vai custar aos cofres públicos, ou se a peregrinação para vê-lo vai ser popular ou não.

"A viagem do relicário é um tanto preocupante", pontuou o escritor Renato Tapioca Neto, resumindo o sentimento dominante. Ele administra uma das maiores comunidades sobre assuntos relativos à monarquia na internet - a Rainhas Trágicas - Mulheres, Guerreiras, Soberanas —, que tem mais de 230 mil seguidores no Facebook. "Em um país como o Brasil, onde museus são queimados e monumentos públicos depredados, a chegada do relicário gera, no mínimo, apreensão!", escreveu.

Exatamente por essas razões, nas últimas semanas, o clima na embaixada brasileira em Lisboa era de tensão absoluta. E se acontece algo? E se quebram? E se roubam? E se aquilo desaparece? Outro ponto de ansiedade era a questão do seguro. Como calcular o valor do coração de Dom Pedro 1º? Conversei com um diplomata brasileiro sobre o assunto. Ele disse que estava angustiado. Que a hipótese de um incidente envolvendo o coração era tratada com seriedade pelo corpo diplomático, ainda que medidas de segurança extrema tenham sido tomadas. Que acalmava os ânimos saber que o órgão ia na cabine do avião da FAB e não no bagageiro. Que a exigência dos portugueses para que fosse construída uma caixa climatizada para abrigar a outra caixa com o coração também era prudente. Que não sabia como tinha sido acertado o valor com a seguradora. "Se algo acontecer, é uma verdadeira crise diplomática", disse em tom dúbio.

A agenda do coração é intensa. Na chegada, será recebido com honras de chefe de Estado, salvas de canhões e desfile dos Dragões da Independência. Depois, segue para a sede do Ministério das Relações Exteriores, onde ficará exposto ao público em uma sala climatizada por vinte dias. Um dos maiores estudiosos das monarquias mundo afora, o embaixador português aposentado José Bouza Serrano acaba de concluir um livro sobre a dinastia dos Windsors e é também autor de "As Famílias Reais dos Nossos Dias". "As pessoas se chocam com o coração preservado, acham repugnante, 'ai, que horror, umas vísceras!', mas é um ato simbólico importante para a relação entre os dois países-irmãos", comentou, antes de uma longa preleção sobre a árvore genealógica dos Orléans e Bragança, dos reis espanhóis e dos holandeses.

Ele acredita que Bolsonaro possa querer usar a entranha do imperador a seu favor, mas não vê problema. "Ainda que o governo brasileiro não esteja tratando muito bem os descendentes da monarquia portuguesa lá", disse. Entre os monarquistas, ficou a impressão de que poderia ter se dado mais atenção à morte de Dom Luiz de Orléans e Bragança, bisneto da princesa Isabel e chefe da Casa Imperial do Brasil, ocorrida em julho. Ainda que Bolsonaro tenha declarado luto oficial no país e feito um comentário sobre a morte em uma de suas lives ("A gente lamenta aqui a notícia triste. O falecimento do senhor Dom Luiz de Orléans e Bragança. Lamenta. Nasceu em 38. Faleceu hoje"), as manifestações não estariam à altura da importância da família real para a antiga colônia.

Dias depois da morte do monarca, seu primo, Dom Duarte Duque de Bragança, Chefe da Casa Real Portuguesa, organizou um "réquiem" em sua homenagem na Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, em Lisboa. Uma dúzia de senhores de terno compareceu. Ao final, a conversa dos presentes girou em torno da viagem do coração (todos a favor) e o risco de algo acontecer. Comentei com Bouza sobre o assunto. "Pois é perigoso! Vejam lá, aquilo quebra! Atravessar o Atlântico todo, aquilo está em vidro!", exclamou.

O coração está guardado numa ala da Igreja da Lapa, no Porto. Para acercar-se dele é preciso tirar uma pesada placa de cobre pregada numa porta de madeira. Depois, usar uma chave de cerca de 15 centímetros e outras quatro até passar as grades. Ali, vê-se uma caixa de madeira chaveada, que tem dentro um estojo de veludo, que por sua vez acomoda um vaso de prata dourado, onde está o relicário com o vidro de formol. As cinco chaves estão em poder de pessoas diferentes. O acesso ao público é restrito. Na prataria, lê-se o texto gravado em caligrafia antiga: "D. Pedro, Duque de Bragança, fundador da liberdade pública, seu doador e vingador havendo, por impulso da Divindade e com a sua grandeza de alma, aportado às praias do Porto e tendo ali, com o seu exército e pela grande e quase incrível ajuda que lhe prestaram os portuenses, vingando ao mesmo tempo e com justas armas, a Portugal, tanto de tirano que o oprimia como de toda a sua facção, elegendo o Duque, por isto mesmo, e ainda em vida, aquele lugar onde tão magnanimamente expôs a própria vida pela Pátria, para nela, depois da morte descansar o seu Coração, Amélia Augusta, amantíssima consorte do Duque, querendo, de boa vontade, cumprir o voto de seu Esposo, colocou, reverentemente, nesta urna, os despojos mortais do Coração de seu marido".

Em 1972, quando se comemoraram os 150 anos da Independência, no auge da ditadura militar, o governo brasileiro pediu a Portugal os restos mortais do imperador, que desde então repousam na cripta do Monumento do Ipiranga, em São Paulo. Portugal tem tradição de guardar restos mortais ou partes do corpo de figuras religiosas ou monarcas. Os fios de cabelo de São João Paulo 2º estão no santuário de Santa Rita de Cássia, em Ermesinde. Um pedaço de osso do menino Francisco e o cabelo da menina Jacinta, os pastorinhos que viram Nossa Senhora em Fátima, e a mão de Santa Isabel estão no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra. Já Santo Antônio está espalhado pela Europa. Há um dedo numa igreja, um braço num museu. Há também um dente.

Nada perto do que faz a Rússia, que mantém o alegado pênis do folclórico conselheiro czarista Grigori Rasputin preservado em álcool no Museu do Erotismo, em São Petersburgo. Autoridades do país garantem que o órgão de 33 centímetros é autêntico e que foi adquirido por 8 mil dólares de um antiquário na França. Sobre o pênis de Rasputin, diz-se que aumenta a fertilidade e cura a impotência só de se olhar para ele. Sobre o coração de Dom Pedro 1º, não há mitos ou registros.

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