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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Marcos Nobre: 'Todo mundo tem medo do partido digital bolsonarista'

Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)  - Jardiel Carvalho/UOL
Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) Imagem: Jardiel Carvalho/UOL

Colunista do UOL

29/10/2022 04h00

Este texto é parte da versão online da newsletter de Daniela Pinheiro, enviada ontem (28). Na newsletter completa, Daniela fala sobre o ensaísta mineiro Silviano Santiago, que levou o Prêmio Camões, o bate-boca do técnico português do Corinthians com um jornalista e mais. Quer receber o conteúdo completo na semana que vem, por e-mail, com a coluna principal e informações extras? Clique aqui e cadastre-se.

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'Medo de usar vermelho na hora de votar é uma vitória do bolsonarismo'

Nos últimos quatro anos, as análises do filósofo e cientista político Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), funcionaram como sinaleiras, emitindo luzes vermelhas e amarelas a respeito do governo de Jair Bolsonaro — seus impactos e consequências no sistema político e na sociedade brasileira — a quem quisesse ouvir. Uns o fizeram, muitos não.

Logo depois das eleições de 2018, ele já alertava para a necessidade da formação de uma frente ampla de partidos progressistas para enfrentar a ascensão da extrema-direita no país. Enquanto a esquerda festiva, os intelectuais da cerveja artesanal, o pessoal da ciranda e das notas de repúdio gastavam saliva desmerecendo a capacidade política de Bolsonaro, repetindo que era burro e despreparado, que iria cair por sua incompetência atávica, Nobre insistia em ressaltar a estratégia acidental, a constância imponderável e a capilaridade perturbadora das façanhas do capitão.

Nas últimas semanas, ele não se furtou em tentar desvendar também à imprensa estrangeira o que se passou e o que deve acontecer no Brasil a partir de segunda-feira (31), quando já se saberá quem será o próximo presidente do país. Conversei com Nobre sobre a esquerda e a direita, partidos digitais, Carluxo, as lições de 2018 e 2022, o que acontece com o país se Lula ou Bolsonaro vencer, discussões no Zap e mais. A conversa foi condensada e editada para melhor compreensão.

Daniela Pinheiro: Sua agenda de entrevistas para jornais estrangeiros está lotada. O que os gringos não entendem sobre as eleições brasileiras?
Marcos Nobre: Que o que se passa aqui não é uma polarização. Estou há um mês e meio falando isso todo dia. Outro dia falei para o jornalista do Washington Post: "Presta atenção, vocês já erraram no Trump, não vão repetir aqui!". Polarização é o que existe quando forças opostas disputam o poder aceitando as regras do jogo democrático. Aqui é divisão, é algo mais profundo. É quando essas regras não são mais suficientes para resolver as disputas e os conflitos que aparecem na democracia. E aí, tudo é possível.

E o que eles não entendem?
MN: As instituições democráticas americanas têm mais de 200 anos. A ideia de uma ameaça que acabe com elas nem sequer passa pela cabeça deles. É diferente aqui. Sabemos que aqui as instituições são frágeis, não têm longevidade ou solidez comparadas às dos Estados Unidos. Temos uma cultura política democrática muito pouco enraizada. Esse negócio de democracia demora para se enraizar de verdade.

Outro dia, um português ficou estarrecido por eu ter perguntado ao ministro Gilmar Mendes numa entrevista se as instituições estavam funcionando. Ele disse que só de haver tal pergunta já era prova de que não estavam.
MN: Exato. E essa é a vitória do bolsonarismo. É acordar todo dia, dizer para si mesmo ou ouvir de alguém que as instituições estão funcionando e achar que elas estão. Tem muito de pensamento mágico nisso. Não nos organizamos para enfrentar a extrema-direita, apesar de tudo indicar que deveríamos tê-lo feito. Não aprofundamos a democracia nas instituições e na sociedade. Então, nos sentimos despreparados. E, quando não há ferramentas para lidar com isso, o pensamento mágico ganha terreno.

Como foi isso?
MN: Se eu passar quatro anos falando que o Bolsonaro está fraco, acuado, acabado, ele se torna isso. Na minha cabeça apenas, claro. Isso é a contrapartida da própria impotência da sociedade e das instituições contra uma ameaça de quilate. O pensamento mágico tem essa função. Não foi feito só pelas pessoas, em geral.

Foi fermentado na academia, por gente da universidade, que ficou falando o tempo todo para as pessoas que elas não se preocupassem porque ele tinha os dias contados, que ia se autodestruir, que era incompetente, burro, que não era perigo. Isso foi dito e repetido por gente que sabia o que estava acontecendo. Isso me revolta, sabe? É legitimar a impotência geral da sociedade. Porque a verdade é o contrário. Bolsonaro acuado é exatamente uma característica do político antissistema. Ele é excluído e oprimido pelo sistema e por isso precisa reagir contra tudo. E assim cresce. Essa lição não se aprendeu. E há novas agora em 2022 urgentes de serem absorvidas. Até porque, quando uma ameaça é neutralizada ou afastada, as pessoas passam a achar que não aconteceu nada, que zerou, que agora vai. Não é assim. Esse é o outro lado do pensamento mágico."
Marcos Nobre, cientista político

Essa cegueira alheia sobre os riscos de Bolsonaro era arrogância?
MN: Era pensamento mágico, mas o pensamento mágico também é arrogância. E também houve o erro brutal cometido pela direita: fazer o impeachment da Dilma. Aquilo destruiu todas as regras de convivência política básicas, amplificou a divisão e transformou a política em guerra. O que parecia ser uma estratégia política simples -- entregar a esquerda para as piranhas e tomar conta --, deu toda errada. Não só pela injustiça como pelo absurdo político, mas porque o sistema político brasileiro foi destruído.

Você mencionou a postura dos intelectuais, da academia. Não há como redimir a esquerda, imagino. A baixaria política pegando fogo na campanha, e Lula gravando vídeo com artistas cantando Lula-lá. Poderia comentar?
MN: Você poderia me fazer essa pergunta depois das eleições? Agora eu não posso falar. É lavação de roupa suja. Não vou fazer isso nesse momento.

No caso de uma derrota de Bolsonaro, você defende que o partido digital bolsonarista -- um canhão usado pelo governo e na campanha eleitoral -- será a força motora de uma oposição desleal e baixa nas redes. Do outro lado, o PT ainda vive no mundo analógico. Um dirigente petista me disse que grandes estratégias são boladas pelo Stuckinha, fotógrafo do presidente, e pela Janja, mulher dele, com Mercadante palpitando. Como é possível imaginar um enfrentamento da máquina digital bolsonarista assim?
MN: Há muitas camadas nisso. Uma outra lição não aprendida em 2018 foi que política que não for feita também de maneira digital está fora do mundo atual. E fazer política assim é muito diferente. Há partidos que nascem digitais -- como o que eu chamo de o partido digital bolsonarista -- e se apresentam de duas formas. Ou querem imitar plataformas em termo de organização, como o Facebook, ou estão reunidos em torno de um líder -- no caso, Bolsonaro -- e podem se apropriar do partido analógico que quiser, assim como fizeram no passado com o PSL e agora com o PL, tanto faz. Do outro lado, estão os partidos tradicionais em processo de digitalização. E sabe-se que esses não estão funcionando bem.

Por conta da enraizada mentalidade analógica do PT?
MN: Não adianta você querer apenas ter estratégia de digitalização de partido tradicional. É preciso criar, de fato, um partido digital -- que é algo absolutamente diferente e próprio. No entanto, fazer isso significa, do ponto de vista do partido tradicional, abrir mão de poder. E aí a coisa pega.

É deixar o moleque de moletom dar palpite do que fazer com toda imagem do Lula.
MN: É mais do que palpite. É jogar tudo na mão do moleque. Num partido tradicional, qualquer mudança na correlação de forças internas é encrenca. Ninguém quer. Aliás, quem está excluído da hierarquia quer, mas essas pessoas não conseguem mudar nada sozinhas. Então, existe, sim, uma competição desigual.

Há quem use o argumento do partido digital bolsonarista como um demérito. 'Ah, não conseguem nem fazer um partido de verdade?'
MN: É um erro. Eles não querem fazer um partido de verdade, esse é o ponto. Para que precisam se podem se apropriar de um já pronto? Nos Estados Unidos, seria difícil porque há apenas dois. Mas no Brasil? Há mais de trinta à disposição.

E, aparentemente, a combinação deu certo.
MN: Claro. Uma outra coisa que a eleição de 2022 mostra é que a combinação do partido tradicional com o partido digital bolsonarista é muito eficaz. Quando os interesses de ambos convergem, eles rumam para o mesmo caminho. Quando não, disputam entre si. Isso é novo. Veja o que aconteceu na eleição para o Senado no Distrito Federal. Damares Alves competia com Flávia Arruda. Ganhou o partido digital bolsonarista contra a forma tradicional. Durante o debate, Bolsonaro mencionou o Capitão Contar, e o cara foi para o segundo turno, talvez ele ganhe a eleição para o governo de Mato Grosso do Sul. E isso ia contra a aliança que o PL tinha feito com a Tereza Cristina, bolsonarista do PP, para apoiar outro candidato do Estado. Então, assim combinados, eles rumam na mesma direção, somam interesses, engrossam o caldo. Isso é poderoso.

Dito assim, fica claro que é praticamente impossível para o PT derrotar o partido digital bolsonarista.
MN:
É outra questão para você me fazer depois das eleições.

A única certeza que se tem é de que em três dias haverá um país onde 50% da população odeia o presidente e as outras pessoas que votaram nele. Aconteceu algo parecido nos EUA, e recentemente uma pesquisa mostrou que 43% dos norte-americanos hoje acham que o país estará em guerra civil em dez anos.
MN: No Brasil não aconteceu e nem deve acontecer guerra civil. Isso não está no horizonte. É diferente nos Estados Unidos, onde, por baixo, a população tem 50 milhões de armas. Aqui, digamos, há 2 milhões. Quando não se tem uma guerra clássica, há duas soluções: a primeira é o fechamento autoritário. Uma metade põe suas regras para a outra, e acabou. Ele vai seguir à risca o manual do populista de extrema-direita. Hoje, já se tem uma grande vitória do bolsonarismo, que é o medo que as pessoas têm de falar, de vestir vermelho na hora de votar. Quando sete entre dez pessoas no Brasil têm medo de expressar a própria opinião em público, isso mostra uma vitória do bolsonarismo, concorda? E a outra solução é que um governo progressista dê alguma perspectiva de futuro para quem votou no Bolsonaro, por exemplo, e então se consiga recompor esse pacto de convivência política isolando a extrema-direita, reconstruindo a direita democrática. A Hungria demorou dez anos tentando e perdeu. Então, não temos tempo. Se eles ficam duas eleições, acabou.

E o canhão digital de oposição continuará disparando para matar no pântano das redes sociais.
MN:
Todo mundo morre de medo do partido bolsonarista digital porque ele destrói as pessoas.

Todo mundo que levantou a cabeça contra Bolsonaro foi decapitado. A única pessoa que sobreviveu ao partido digital bolsonarista foi Sergio Moro, que voltou rastejando, pedindo perdão. Ele foi eleito senador, esteve com Bolsonaro no debate, formulou perguntas, implorou perdão e o teve. E as tantas que destruiu? Witzel, Joyce, Frota, Janaína, o Weintraub! O cara foi ministro da Educação dele. Não se elegeu. Estamos falando de um mecanismo muito eficaz."
Marcos Nobre

Carluxo é um gênio?
MN: Não é só o Carluxo. O Tércio Arnaud (que também integra o chamado gabinete do ódio, afastou-se e voltou depois de derrotado nas últimas eleições na Paraíba) sabe lidar muito bem com as redes. Fora todas as conexões internacionais deles, que estão unidas na formação real de uma internacional autoritária. Isso é um fato. Olha o que aconteceu com a Índia, o peso de um país daquele tamanho nesse plano. Com os Estados Unidos também sob ameaça, a eleição brasileira é de uma importância crucial. Seria mais um bastião democrático relevante a cair no autoritarismo eleitoral.

Como a política afetou a sua vida pessoal nos últimos quatro anos? Perdeu amigos, saiu dos grupos de Zap da família?
MN:
Não mudou muito o que eu penso desde 2018. Ali, eu já falava que ele ia mirar uma base de apoio de 40%, que tinha um partido digital poderoso, que a esquerda não ia conseguir derrotá-lo sozinha, que parassem de chamá-lo de burro. Passaram quatro anos jogando pedra na minha cabeça, dizendo que esse negócio de frente ampla era desnecessário, que o Lula ia voltar e resolver tudo. Era solitário. Virei um estranho em todos os lugares: na direita, na esquerda, no centro.

Rompeu com algum amigo ou parente por conta da política?
MN: Quando chega no ponto da ruptura, eu paro. Eu sempre recuo. Temos que preservar o afeto. Não necessariamente o futuro porque esse ficou comprometido, mas o afeto passado, o que tal pessoa foi na sua história, a democracia compartilhada. Mas, sem dúvida, a proximidade desaparece.

E aí só conseguimos conversar bobajadas sobre se vai chover ou não.
MN: Nem isso. Até porque se você disser "Olha, o tempo não está bom" é capaz de acharem que isso quer dizer alguma coisa. A política invadiu todos os aspectos da vida. Espero que possamos conviver de novo como antes, mas é difícil.

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