Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O que a invasão do Capitólio ensina sobre atos antidemocráticos no Brasil
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Pesquisa diz que, para milhões de norte-americanos, a violência se justifica na política
Como ainda estou nos Estados Unidos, continuo a mandar notícias daqui. Há muito o que se aprender sobre como o país está lidando com o trumpismo fora do poder. Absorvemos nada ou muito pouco sobre a pós-verdade, o discurso de ódio, o desrespeito às instituições, a tática antissistema, o populismo rasteiro (e a sério) durante o governo de Donald Trump — o que poderia ter nos fornecido melhores ferramentas para reagir aos mesmos disparates que seriam replicados pelo nosso representante nacional anos depois.
É bom saber que ainda dá tempo de introjetar algumas lições para estarmos menos à deriva num eventual pós-bolsonarismo. O filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), tem repetido: a derrota nas urnas não vai acabar com o bolsonarismo, que seguirá mobilizado e organizado, atuando como "oposição desleal" e antidemocrática, se o atual presidente não for reeleito. É o que acontece com Joe Biden aqui nos Estados Unidos. Não só tem que lidar com o pântano republicano, a recessão vindoura, o retrocesso nas conquistas sociais, mas com o próprio Trump, que segue botando fogo no parquinho na internet ou em suas aparições públicas.
Há 18 meses, a equipe do cientista político Robert Pape, da Universidade de Chicago, tenta entender a origem dos atos de violência provocados pela política na população dos Estados Unidos, sob o prisma da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021 — quando cerca de 800 pessoas entraram na sede do Congresso, dilapidaram salões, gabinetes, ameaçaram parlamentares, em protesto contra o resultado das eleições — que eles julgam terem sido fraudadas. Centenas de manifestantes foram presos, houve dezenas de feridos e cinco mortes.
Desde então, os pesquisadores de Chicago têm realizado uma série de estudos sobre o perfil dos insurgentes de Washington. Em uma das pesquisas, eles analisaram o depoimento dos quase 400 presos no dia da invasão e descobriram que, ao contrário do que se imagina, quase nenhum deles tinha ligação com partidos ou movimentos políticos e nem eram um bando de caipiras ligados à extrema-direita. Era gente comum: 95% eram brancos, 85% homens e, muitos deles, residentes em áreas dominadas pelos democratas. É gente com vida estabelecida, que decidiu sair de casa — topando todos os riscos envolvidos —, para tocar o terror na sede do poder ao lado de extremistas.
Um outro levantamento, divulgado recentemente, foi baseado numa amostragem nacional, que levou em conta fatores demográficos, políticos, econômicos e sociais dos cidadãos numa matemática complicadíssima. A conclusão é que há entre 15 milhões e 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos que concordam que, se for para levar Trump de volta à Presidência, o uso da violência se justificaria — o que joga luz no caso do Capitólio. O perfil dessa turba é de assustar. Entre eles, oito milhões possuem armas de fogo próprias, seis milhões apoiam organizações de extrema-direita, como os Proud Boys, e dois milhões têm passado militar.
"O motim do Capitólio revelou uma nova força na política norte-americana. Não apenas uma mistura de organizações de direita, mas um movimento político de massa, que tem a violência em seu cerne, e que floresce mesmo onde Biden tem a maioria", pontuou Pape em um artigo recente. Resumindo: o potencial de violência dos trumpistas está vivo e não ficou limitado à questão das eleições.
Quando comenta sua tese, Pape recorre à imagem de um incêndio florestal para ilustrar o potencial de violência e mobilização desse grupo. Segundo diz, é como se fosse mato seco no mês mais seco do ano, esperando apenas uma faísca para se inflamar e destruir tudo. No caso, a faísca costuma ser as declarações incendiárias de Trump e dos membros do Partido Republicano.
É o mesmo que disseram os pesquisadores Luís Carlos Petry e Rudá Ricci, em artigo recente publicado na Folha de S.Paulo, sobre o "caldo de cultura de violência" instalado no Brasil, chamado por eles de "terrorismo estocástico": fanáticos alimentados por bolhas extremistas ou "câmaras de eco" que disseminam diariamente o ódio, o racismo e a construção de um mundo paralelo onde a realidade é apresentada como algo nefasto a ser combatido.
Há quatro anos, o discurso do ódio vem sendo propalado pela mais alta autoridade da República. Uma compilação rápida: "É bom, um tiro só mata todo mundo ou uma granadinha só mata todo mundo" (comentando que Lula estava se reunindo com outros partidos); "A bandeira do Brasil só será vermelha se for preciso nosso sangue para mantê-la verde e amarela" (discurso de posse); já disse também que o governo aumentou o número de armas de fogo no país para que a população possa reagir contra o Estado; que as Forças Armadas deveriam se preparar para combater agressões internas de "traidores do país"; que os eleitores "sabem como se preparar para a eleição", em referência à invasão do Capitólio. E há o sempre lembrado "Vamos metralhar a petralhada", desferido em 2018, durante a campanha eleitoral. Também passamos a conviver com mais frequência com notícias de outro mundo: o ataque ao carro do juiz que decretou a prisão do ex-ministro da Educação; fezes atiradas por um drone durante um comício de Lula; bomba caseira num ato de campanha do PT; o assassinato do dirigente petista que festejava seu aniversário. Quem estuda a fundo o assunto diz que ação (estímulo à violência) e reação (ato violento cometido) estão umbilicalmente interligadas.
A pesquisa de Pape traz outra surpresa: cerca de 10 milhões de democratas também acham que o uso da violência se justifica se for para ajudar causas liberais, como mudar "leis e instituições que são fundamentalmente injustas". E me veio à mente Lula saudando o ímpeto e a fidelidade de um ex-vereador do PT, que agrediu um empresário que xingava o ex-presidente, provocando-lhe um traumatismo craniano. Por conta do crime, o político puxou cadeia por sete meses.
A sugestão de Pape para conter a tragédia da violência política passa por uma ação conjunta dos lados polarizados. Que começassem por rejeitar apoio político e financeiro de extremistas, que condenassem ao ostracismo qualquer correligionário que defendesse atos violentos.
Durante o debate presidencial da semana passada, quando a candidata Soraya Thronicke (União Brasil) pediu reforço em sua segurança porque "iria revelar muita coisa", a internet reagiu com memes, GIFs e hashtag #revelasoraya. Ela tinha razão. Em terra de piromaníacos e com o impávido tio do pavê disposto a tudo, basta riscar o fósforo.
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