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'WandaVision' faz refletir sobre busca por controle e dificuldade com luto
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Aviso: O texto contém spoilers do seriado "WandaVision" e do filme "Avengers: End Game".
Com estreia no dia 15 de janeiro, o seriado "WandaVision" se passa logo após os acontecimentos de "Avengers: End Game", o último filme dos Vingadores que ficou marcado não apenas pela maior concentração de personagens da Marvel em um único título, mas também porque muita gente morreu — mais exatamente, metade de toda a vida no universo. Wanda Maximoff ou Scarlet Witch, no entanto, não foi atingida pelo "blip" causado por Thanos. Seu irmão Pietro (Quicksilver) e seu namorado Vision não tiveram a mesma "sorte".
"Avengers: End Game" já foi um filme um tanto sombrio porque os fãs tiveram que acompanhar (e engolir a seco) a morte de protagonistas como o Homem de Ferro e Viúva Negra. É um longa que, por si só, já traz um sentimento de "humanização" dos super-heróis ao mostrar um Thor depressivo, um Gavião Arqueiro que prefere o anonimato da vida pacata no campo e, bem, o próprio fato de que Stan Lee tinha acabado de falecer do outro lado da tela.
Apesar disso, franquias de super-heróis são justamente conhecidas por suas linhas do tempo caóticas em que protagonistas morrem, mas podem retornar em sequências de linha do tempo alternativa, spin-offs que podem não trazer mais informação sobre o futuro do personagem, mas que nunca o deixa "morrer" de verdade — no máximo, temos um possível sucessor, como é o caso de Capitão América e do Homem de Ferro, por exemplo.
Nesse ponto, "Avengers: End Game" recorreu à máxima da negação da morte, que é a viagem no tempo para reverter a realidade quando já não restam esperanças. "WandaVision" traz a mesma abordagem com uma combinação de viagem no tempo e criação de realidades alternativas. Nos quadrinhos, Scarlet Witch é uma das mutantes mais poderosas — o que não fazia jus à maneira tímida como ela vinha sendo retratada nos filmes dos Vingadores. Mas parece que a Marvel, agora propriedade da Disney, está dando um jeito nisso.
Nos primeiros episódios de "WandaVision", não temos muita informação sobre o que está de fato acontecendo, mas temos trinta minutos de leveza com Elizabeth Olsen e Paul Bettany vivendo como um casal suburbano dos anos 1950, com direito a piadas típicas de sitcoms da época. Só que sempre há "um erro na Matrix" fazendo com que Wanda tenha que começar tudo de novo, de preferência em uma nova década, com novos acréscimos de personagens — como seus filhos Billy e Tommy —, além dos moradores de Westview, que são reduzidos a tropos atualizados conforme a época em que se situam.
O fato de haver "um estranho no ninho" da realidade alternativa de Wanda (no caso, a agente Monica Rambeau, interpretada por Teyonah Parris), faz com que ela vá perdendo o fio da meada. Afinal, mesmo sem saber exatamente como está fazendo isso, Wanda ainda é responsável por arquitetar toda a realidade daquela cidade — que é composta não por fantasmas, mas por pessoas de verdade, controladas por sua magia. Invariavelmente, os agentes da S.W.O.R.D. tentam se infiltrar no perímetro dominado por Wanda, que eles apelidam de "hex" em alusão ao formato hexagonal e também ao termo "feitiço" no inglês. Isso confunde Vision e provoca constantes discussões entre o casal.
Apesar disso, Wanda pode muito bem subverter a ordem de tudo resgatando o passado e mudando o futuro, reorganizando o pensamento das pessoas, fazendo com que todos sigam o roteiro dessa realidade cada vez mais pesada e difícil de sustentar — daí os moradores mais afastados do centro de Westview estarem "congelados".
Outros comentários já insinuaram que "WandaVision" é um seriado que tem se organizado a partir dos cinco estágios do luto segundo o Modelo de Kübler-Ross (negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação), mas talvez a narrativa não esteja assim tão bem encaixada em etapas. De qualquer forma, é inegável a tristeza que o seriado transmite, mesmo durante os momentos de alívio cômico e de resgate da nostalgia das décadas passadas através de referências a séries famosas como "Malcolm in the Middle".
Além de tratar do próprio luto de Wanda que, por sua vez, "ressuscita" Vision e seu irmão Pietro, a série diagnostica muito do humor contemporâneo: o fato de tantas franquias de super-heróis estarem prosperando, a multiplicação de títulos de remake, spin-offs e sequências, o retorno da estética dos anos 80 e 90 na moda — tudo isso inaugura um novo período, que alguns pesquisadores chamam de metamodernismo. Ter sido lançado um ano após o início da pandemia, quando tantas mortes por covid-19 foram registradas e tantos hábitos e realidades foram subvertidas, só encaixou ainda melhor no sentimento que muitos devem estar compartilhando: luto, isolamento e dificuldade de lidar com a realidade.
Acontece que Wanda não é um ser humano qualquer. Ela pode alterar a realidade, tem o poder de "trazer de volta" os mortos, ainda que não exatamente eles, em si. Conforme vemos ao longo dos episódios, há muitas "falhas" na construção de personagens como Vision e Pietro: ambos são apenas reflexos das memórias de Wanda sobre eles, não o que eles de fato eram.
Um exemplo perfeito de transmídia, "WandaVision" não só emula linguagens cinematográficas e televisivas como também navega pelo universo Marvel e seus desdobramentos no cinema conforme, antes de serem comprados pela Disney, os X-Men eram propriedade da Fox e, por isso, personagens que também apareceram nos filmes dos Vingadores podem ter sido interpretados por atores diferentes da outra franquia. Esse foi o caso de Quicksilver, mas "WandaVision" faz questão de reforçar essa incongruência, inclusive mostrando as cenas na qual Pietro, então interpretado por Aaron Taylor-Johnson, aparece morrendo no filme dos Vingadores em contraste à atual interpretação de Evan Peters.
Ainda é muito cedo para dizer sobre o que, de fato, "WandaVision" está falando (e que mensagem o seriado quer nos passar), mas considerando os filmes passados da Marvel, bem como a inspiração nos quadrinhos como "Dinasty M", experimentamos através do sofrimento de Scarlet Witch a hipótese de como seria se pudéssemos trazer os mortos de volta à vida. Se antes os super-heróis tinham poderes praticamente infinitos, nessa nova leva de adaptações cinematográficas, conhecemos justamente suas fraquezas e vemos como certos dilemas tão humanos não podem ser totalmente contornados — mesmo com poderes tão incríveis quanto os de Wanda.
Quando se diz no seriado que Wanda ficou tão triste e sozinha com a morte de Vision e de Pietro que ela resolveu criar uma nova realidade em que isso não aconteceu, para viver uma vida simples e feliz, o que vemos é a própria negação do luto. O trauma cria um bloqueio na mente e, no caso de Wanda, uma nova realidade em que pessoas que nada têm a ver com o assunto também são subordinadas.
Em diferentes momentos, fica claro o quanto Wanda luta contra a sua personalidade controladora: parece que ela não quer ser assim, mas como está vivendo dentro da realidade que ela própria arquitetou, não pode se dar o luxo de simplesmente aproveitar o momento — e quando isso acontece, também ocorre algum problema, como quando Vision tenta escapar do perímetro. Wanda tem que sempre estar (re)convencendo a si mesma e os outros de que aquilo é real, de que ali é um ambiente seguro, e não permitir que ninguém de fora adentre no seu "globo de neve" de memórias perfeitas, mesmo que ele não esteja se sustentando tão bem assim.
De acordo com Douglas Rushkoff em Team Human, "trabalhos comerciais com uma figura central, uma tensão crescente e uma resolução satisfatória obtêm sucesso porque eles lidam com nossos medos da incerteza, tédio e ambiguidade — medo gerado pelos valores de mercado que orientam nossa sociedade a priori. Além disso, vivemos em um mundo no qual a incerteza é igualada à ansiedade, em vez da vida em si. Nós sofremos por um encerramento. É por isso que as pessoas, hoje, estão mais propensas a comprar ingressos para filmes blockbuster sem ambiguidade e conclusivos do que para um filme artístico, anticlimático e provocativo. Isso é porque nós fomos treinados a temer e rejeitar a possibilidade de que a realidade é uma atividade participativa, aberta à nossa intervenção."
Num momento de tantas incertezas e conflitos quanto o atual, faz sentido buscar histórias leves e simples, que apenas organizem e sigam uma fórmula que nos dê conforto — como naqueles vídeos em que uma peça encaixa perfeitamente em seu espaço, ou quando um objeto é cortado perfeitamente simétrico. "WandaVision", no entanto, não tem trazido conforto à sua audiência, mesmo quando procura usar essas fórmulas simples de sitcoms (o que demonstra que a busca por simplicidade, organização e controle é uma ilusão tão frágil quanto o "hex" criado por Wanda).
Ainda veremos como o seriado irá, de fato, lidar com o luto de Wanda e a nossa busca por controle e incapacidade de lidar com nossas perdas, sejam elas pela morte de um indivíduo ou pelo fim de um ciclo.
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