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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Sommeliers de vacina' provam o estrago da postura de Bolsonaro na crise

O presidente Jair Bolsonaro - Divulgação/Palácio do Planalto
O presidente Jair Bolsonaro Imagem: Divulgação/Palácio do Planalto

Colunista do TAB

07/07/2021 04h00

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Uma amiga da família testemunhou um verdadeiro desembarque na fila quando as pessoas foram informadas que só havia CoronaVac naquele posto de vacinação.

Um amigo postou em suas redes o momento em que foi imunizado. Um seguidor perguntou, com dezenas de pontos de interrogação, se tinha sido a "vachina". Ele respondeu que não em tom de alívio. Mãozinhas em forma de gratidão ao Pai Eterno encerraram o diálogo virtual.

Não são casos isolados.

Na Grande São Paulo, a prefeitura de São Bernardo do Campo precisou tomar medidas duras após cerca de 300 pessoas recusarem a vacina disponível em seus postos em apenas três dias. Agora, quem fizer o mesmo na cidade terá de assinar um termo de responsabilidade e aguardar o fim do processo de imunização de toda a população adulta para voltar à fila. Até onde se sabe, 32 pessoas assinaram o termo na boa.

Perto dali, em São Caetano do Sul, a prefeitura local deixou de informar antecipadamente a "marca" do imunizante. Isso porque 647 pessoas não aceitaram a vacina oferecida na sua vez.

Têm sido chamadas de "sommelier de vacinas" as pessoas que chegam ao posto e querem escolher qual imunizante tomar.

A expressão dá a entender que o fenômeno surgiu de maneira espontânea, como um reflexo de uma sociedade de consumo acostumada a manusear produtos nas gôndolas de supermercado e escolher o que comprar a partir da relação custo-benefício. Deixa subentendida também que a recusa se estende a uma miríade de ofertas. Não é. É resultado apenas de uma campanha específica contra uma das vacinas: a Coronavac, imunizante produzido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. A vacina do João Doria, para usar uma expressão do guru dos sommeliers, o presidente Jair Bolsonaro.

Desde que o governador paulista anunciou a parceria, o enciumado ex-capitão não fez outra coisa se não espalhar inverdades sobre o imunizante. Bolsonaro chegou a comemorar, dizendo que havia vencido mais uma, a notícia da suspensão dos testes da Coronavac quando um voluntário morreu. Soube-se depois que a causa da morte não tinha nada a ver com a presença do vírus inativado no corpo. A causa era suicídio.

Em suas redes, o principal influencer do país escreveu que o seu adversário político queria obrigar "todos os paulistanos" a tomar uma vacina que causava "morte, invalidez, anomalia". Como na balela sobre supostas fraudes das eleições de 2018, nunca apresentou as provas.

O presidente mentiu aos seus seguidores dizendo que a eficácia daquela vacina de São Paulo estava "lá embaixo". Recomendava, em vez disso, que os compatriotas tomassem remédio contra piolho e malária para sobreviver à pandemia. Ele também dizia que o "povo brasileiro" não seria cobaia das vacinas quando estavam em fase de testes e desautorizou Eduardo Pazuello, seu ministro de Saúde à época, quando ele anunciou um acordo para a aquisição de milhares de doses.

Na semana passada, Bolsonaro voltou à carga ao sugerir, em sua live de quinta-feira (1º), que "tem uma vacina aí que infelizmente não deu certo". "Estou aguardando aquele cara de São Paulo falar". Mais uma vez, ele apostava na confusão — catapultada pelo aumento de casos de covid-19 em países que apostaram na Coronavac, como o Chile. Só que as razões para o número de infecções nesses locais são mais complexas do que supõe o pensamento binário do capitão.

Se quisesse, ele teria aqui do lado, em Serrana (SP), uma experiência de campo para atestar a eficácia da vacinação em massa que sabotou desde o início.

Misto de ranço político com xenofobia pura, a reação à vacina produzida em São Paulo com ajuda de cientistas chineses encontra ecos em manifestações de apoiadores do presidente e grupos de extrema-direita nas redes sociais. O que não faltam nessas publicações são referências à China como a origem do vírus e delírios a respeito de um grande plano para dominar o mundo por meio de chips implantados em cada dose.

Esses grupos difusores da ignorância têm no Palácio do Planalto a sua matriz. Os estragos das campanhas difamatórias, quase todas nascidas nos canais digitais, são observados agora nas filas dos postos da vida real, onde as pessoas preferem correr o risco de morrer sem proteção a aceitar um imunizante tão torpedeado pela maior autoridade do país.

Chamar as pessoas na ponta dessa campanha de "sommeliers de vacina" é responsabilizar quem, no fim das contas, é a vítima preferencial de uma sistemática campanha contra a saúde pública. Elas só existem aos montes porque têm um guru para chamar de seu.

Na história do morticínio, a culpa de Bolsonaro nessa desmobilização é um capítulo que não pode virar rodapé.

Em tempo. Vacinados com a Coronavac desde o início do ano, meu vô e minha avó, ambos octogenários, tiveram contato com um familiar infectado, e não-imunuzado, e dias depois tiveram sintomas leves da doença, como tosse. Testaram positivo para covid-19 na semana passada e hoje passam bem. Não quero imaginar o que teria acontecido se não fosse a "vachina". Como diz o mantra, não existe vacina ruim. Ruim é não se vacinar. É por você, mas também por todo mundo ao redor.