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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pelados na despedida do Fleets comprovam a falta que fez o Carnaval 2021

Tico Santa Cruz compartilhou nudes no fleets do Twitter - Reprodução: Twitter
Tico Santa Cruz compartilhou nudes no fleets do Twitter Imagem: Reprodução: Twitter

Colunista do UOL

04/08/2021 04h00

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Não era um bom programa para domingo depois da missa.

Um tuiteiro desavisado que entrasse em suas redes sociais naquela noite descobriria, talvez com sobressaltos, duas informações com as quais viveu até então sem notar a diferença.

A primeira é que chamava "fleets" a ferramenta de vídeo instantâneo do Twitter — e não Stories. A segunda é que a ferramenta estava com os dias contados. E que, como se o mundo fosse acabar por causa disso, era preciso simular uma cerimônia de bota fora. Alguns levaram o imperativo ao limite da literalidade.

Desde então, a noite de 1º de agosto passou a ser conhecida como a noite da Esbórnia no Brasil.

Quem achava cringe o que os millennials costumam postar em suas redes abertas não perdia nada por esperar o que a geração dos tios era capaz de botar pra fora em seus fleets. Não era para ser muito diferente do que costuma acontecer nas bolinhas verdes (espécie de cercadinho VIP do Instagram), numa sexta-feira à noite — mas ganhou status de hard-core apocalíptico. Cine Privê virou Sessão da Tarde.

Não teve, ao menos entre o público-alvo, quem não se lembrou da música de abertura da mini-novela "O Fim do Mundo", que foi ao ar há exatos 25 anos.

Tanto a trama, escrita por Dias Gomes, como a composição de Paulinho Moska e Billy Brandão questionavam o que o faríamos se só nos restasse um dia de vida. A mini-novela mostrava uma cidadezinha em polvorosa onde todos os personagens lutavam para não levar ao caixão nem as taras nem as travas sexuais.

A música tinha um menu mais encorpado. Manter a agenda? Esperar os amigos na sala? Passear no shopping? Correr pra academia? Andar pelado na chuva? Entrar sem roupa no mar? Transar sem camisinha?

Nada disso parece viável em tempos de quarentena. Restou correr pelado para os fleets. (Imagens de arquivo, decerto, devido às baixas temperaturas que escondem e inibem o que, em tese, se quer mostrar).

Nada contra nudes num domingo à noite. Tenho até amigos e amigas que postam. (Inclusive, parabéns).

Mas o fenômeno coletivo de vazão a desejos privados de ver e ser visto, desejar e ser desejado, entrou na conta dos dramas sociais de um tempo suspenso. Uma amostra disso já havia acontecido quando uma multidão mostrou que simplesmente não sabia lidar com o áudio da suruba no Airbnb. Nessas horas, todos parecem crianças ouvindo a palavra "pipi" e "pepeca" pela primeira vez.

Em tempo recorde, caía mais uma vez por terra a tese de que a geração millennial penou mas finalmente aprendeu, a duras penas, a manejar as redes sociais que não existiam antes de ela nascer. A confusão entre o público e o privado, o efêmero e o eternamente registrado, o voyeur e o stalker, é só o começo da conversa.

A maioria zanzou ali meio torto entre a conversão digital ao mundo hippie, adaptado pelo lema "manda nudes, não fotos da motociada", e a aflição de quem, à distância, aprisionou os desejos a um campo visual — asséptico, sem cheiro, suor, lágrimas e tudo o que envolve o corpo humano, real e não apenas capturado em seus melhores ângulos.

Sem essa intenção, a quarentena criou um laboratório, em tempo real, sobre uma pergunta antiga a respeito do que seria o brasileiro sem os quatro dias ou mais de Carnaval uma vez por ano. Como canalizaria tanto afeto contraditório dos espíritos festivos em um país notadamente violento, moralista, castrador de desejos etc?

O furor em torno dos fleets sem vergonha (sem conotação pejorativa, juro) deu um ensaio de resposta.

O Carnaval e outras festas com ode à liberdade, hoje tema das reportagens policiais, são alguns dos muitos desejos suspensos por uma quarentena que vê nos corpos erotizados uma espécie de prova de vida.

É como se os fleets, em seus últimos suspiros, gritassem que reis e rainhas, plenos em suas fantasias, estão nus, mas vivos. Muito vivos. Vivos, vivos, vivos.

É o que tem para hoje. Ou melhor: para um domingo à noite.

Que falta faz o Carnaval.