Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Triunfo do Talibã é ferida aberta sobre a casca fina da civilização
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Era domingo de manhã e tudo o que eu tinha era raiva.
Horas antes, um amigo havia enviado um "off topic" no grupo de torcedores dizendo que, naquele instante, Cabul estava sendo tomada pelo Talibã.
Por mais distante que possa parecer, a incursão armada a quase 14 mil quilômetros de onde moro era uma entre tantas feridas purulentas no invólucro civilizatório onde escondemos os artefatos da barbárie.
Após 20 anos de ocupação americana, o retorno triunfal daquela meia dúzia de soldados barbudos que mais pareciam o exército de Brancaleone atualizava a receita do que, não importa quantas viagens para o espaço nossos representantes mais bem-sucedidos da espécie protagonizem, com os ingredientes e utensílios mais elementares dessa cozinha é possível dinamitar toda o arcabouço que nos afastou das cavernas e nos trouxe até aqui. Às vezes basta um cabo, um soldado e um cantor sertanejo ao berrante.
Um dia antes, numa terra não muito distante, um líder extremista vestido de verde e amarelo havia declarado guerra contra dois ministros da Suprema Corte de seu país que ousaram desenhar uma risca de giz no chão do terreno por onde avançam a passos largos, com armas e escapamentos furados, os instintos mais primitivos de seus conterrâneos. O rebuliço nas redes nos toma tempo, engajamento, apreensão.
E então temos raiva.
Desovado em textões de Facebook, áudios acelerados no WhatsApp e leituras atentas da conjuntura com alertas de notificação, o estado de hiperatividade que a raiva provoca é um estágio anterior à insônia e outros sintomas de tensão permanente. Os dentes rangendo não deixam mentir.
A raiva nos impede de desistir e precisa ser alimentada.
Como se fosse possível me afastar de tudo isso, acostumei-me a flertar com o limite do cansaço, na natação e na velocidade da esteira, para atingir um espaço particular em que, ao menos ali, os pensamentos não se convertem em tormentas. Cada parte dolorosa do corpo ao fim do exercício é uma lembrança de que estou vivo. Algumas eram também alertas do exagero que deixei falar sozinhos naquele domingo de manhã.
Para driblar a raiva e não pensar em nada, brincava com meu filho e seus amigos numa quadra improvisada perto de casa quando, ao passar o pé em cima da bola, minha panturrilha estourou. Era como se uma outra bolha tivesse explodido naquela região da perna. Meus planos de correr e apagar de cansaço na marra estavam adiados. Eu mal podia ficar de pé.
A nova situação me obrigou a passar a tarde de domingo recolhido, em silêncio e com a perna para cima enquanto todos os habitantes da casa saíam para sua volta dominical nos espaços abertos que eu já não alcançava.
Era minha forma inconsciente de homenagear o Beto Guedes, que completou 70 anos no último dia 13 e me lembrou dos versos da "Página do Relâmpago Elétrico". Minha limitação física me obrigava a dar um tempo para prestar atenção nas coisas, fazer um minuto de paz. Um silêncio que ninguém esquece mais.
Foi insuportável.
Pilhado, passei a mão no controle remoto na busca por qualquer coisa que me retirasse de mim. Caí, por indicação de amigos, na segunda temporada de "Modern Love". Logo no primeiro capítulo, caí de paraquedas na história de uma mulher que reluta em vender um carro antigo, novo demais para ser clássico e velho o suficiente para travar em cada esquina. O espectador não demora a entender o porquê daquele apego. Aquele veículo avariado é o último reduto de conexão com um mundo dinamitado pela ausência de alguém. Alguém sem o qual a personagem não consegue seguir.
A série está na Amazon Prime — sim, nós estamos bancando as viagens espaciais — e não recomendo chegar a ela desarmado e sem lenços, como eu fiz.
Perda, luto, continuidade, conexões, respeito pela dor, vazio. Um simples episódio de uma série de streaming parecia clarear aquilo tudo que aterroriza nossos tempos e que tentamos evitar a todo custo.
Minha raiva era o disfarce de outra coisa. Era o efeito rebote de um medo anterior. O medo insuportável e recorrente da perda em um mundo onde um tropeço, uma tosse ou um espirro podem tirar de mim o que me é mais valioso. Já são 570 mil conterrâneos mortos, alguns parentes, muitos amigos, nesta pandemia.
Em tempos de pandemia, minha raiva é a arma possível contra a raiva alimentada por alguém que também não quer reconhecer seu medo mais brutal.
No adversário, traço meu inimigo para não vislumbrar meu limite e fragilidade. Quando o risco à nossa sobrevivência é corporificado e ganha rosto, nos agarramos a linguagens, estratégias, grupos de afinidade para nos reconhecer como sujeitos ativos. Os agentes da história.
Bradamos em homenagem aos nossos sistemas de saúde e nossas ideias de coletividade como a resistência possível contra os bárbaros que nos desprezam e apostam na criação de superindivíduos contra tudo o que os expande, espana, fragiliza e ameaça — o outro.
Guerreamos convictos de que a eliminação de suas ideias do caminho nos dará sobrevida. A guerra, real ou imaginária, é um grito contra o aniquilamento. A busca pela sobrevida é a história de um paradoxo. Não tem como dar certo. Não deu nada certo.
O medo do aniquilamento levou uma multidão a se agarrar como podia em uma salvação improvável na lataria de um avião em Cabul. A queda daqueles corpos é o estalo da nossa falência.
O medo do aniquilamento levou soldados armados a retomar o controle de um país onde o inimigo levou tudo, menos a paz. No lugar, propõem agora o controle dos corpos sob ameaça armada.
E medo.
Sempre o medo.
Com ele, vaticinou Carlos Drummond de Andrade, fazemos casas, duros tijolos, medrosos caules, repuxos, ruas só de medo e calma. "Eles povoam a cidade. Depois da cidade, o mundo. Depois do mundo, as estrelas".
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