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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com Heleno, esta terra ainda vai se tornar uma imensa Serra Pelada

27.mai.2021 - Cratera aberta pelo garimpo na região do rio Uraricoera, dentro da Terra Indígena Yanomami, lembra garimpo de Serra Pelada nos anos 1980, quando até 25 mil garimpeiros chegaram a trabalhar diariamente no local - Divulgação/ISA
27.mai.2021 - Cratera aberta pelo garimpo na região do rio Uraricoera, dentro da Terra Indígena Yanomami, lembra garimpo de Serra Pelada nos anos 1980, quando até 25 mil garimpeiros chegaram a trabalhar diariamente no local Imagem: Divulgação/ISA

Colunista do UOL

08/12/2021 04h00

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A febre do ouro, que continua impondo a morte ou a escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no Brasil; seus estragos, tampouco.

A sentença acima também não é nova e nem é minha. Está no livro "As Veias abertas da América Latina", publicado em 1971 por Eduardo Galeano, e abre um clarão na mata fechada para entender a gravidade da autorização, dada pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Nacional, para o avanço de sete projetos de exploração de ouro na região de São Gabriel da Cachoeira, uma área intocada a noroeste da Floresta Amazônica.

Revelada pelo repórter Vinicius Sassine, a notícia causa preocupação. A área, conhecida como Cabeça de Cachorro, onde vivem 23 etnias indígenas, é uma das últimas fronteiras sem atividades que resultam em desmatamento elevado, mapeado em dados que depois precisam ser omitidos em discursos para gringo ver.

Parte dos empresários beneficiados pelo general tem uma folha corrida extensa de problemas com os órgãos ambientais — órgãos surrados e sucateados pela atual gestão. Para quem não quer esperar as próximas décadas para testemunhar a destruição, os destroços do passado servem como visão antecipadora do futuro. A obra de Galeano é um spoiler em cada página.

A história da América Latina é a história dos movimentos predatórios de exploração das riquezas naturais. No Brasil, essa história tem início com o avanço sobre o pau-brasil, árvore típica da Mata Atlântica, praticamente desaparecida das paisagens do país ao qual emprestou o nome.

Neste modelo, a regra é arrancar tudo até a última ponta e partir para o próximo empreendimento sem deixar nada além da miséria no lugar.

A busca pelo enriquecimento fácil fez o centro da dinâmica econômica se deslocar para o Sudeste, ao longo do século 18. Nas cidades hoje históricas de Minas Gerais, escreve Galeano, os mineradores desprezavam o cultivo da terra, e a região padeceu epidemias de fome em plena prosperidade entre 1700 e 1713. Os milionários tiveram de comer gatos, cachorros, ratos, formigas e gaviões. Os escravos gastavam suas forças e seus dias nas lavagens de ouro. Ali trabalhavam, ali comiam, ali dormiam e ali ficavam vulneráveis a enfermidades como pleurisia, apoplexia, convulsões, paralisia e pneumonia, enquanto os capitães do mato recebiam recompensas, em ouro, por cada cabeça cortada de escravo fugitivo. Tudo para alimentar as potências europeias emergentes. O ouro brasileiro pagava as importações vindas da Inglaterra e bancavam, longe daqui, os investimentos no setor manufatureiro que serviriam de base da revolução industrial.

Em 1818, quem visitava Ouro Preto e outras cidades da região já se assombrava com a pobreza das casas vazias e sem valor. O legado de pobreza e ruína, escreveu o autor uruguaio, no século 20 se traduziu em grandes latifúndios dos coronéis de fazenda e "impertérritos bastiões do atraso".

A chegada de Jair Bolsonaro ao poder empossou também uma forma de pensamento segundo a qual floresta boa é floresta asfaltada e índio bom é índio que colabora com um modelo predatório de produção de riqueza que acompanha a história brasileira desde a chegada dos portugueses. Pode ser observado no ciclo a cana-de-açúcar, da borracha, do ouro e até do pré-sal.

Foi na ditadura militar, já no fim do século 20, que uma febre de ouro recente praticamente depenou, sob o comando do Major Curió — o general Heleno da época — o que havia de mata em Serra Pelada e seu entorno, no Pará. Como lembrou a colunista Cristina Serra, na Folha de S.Paulo, pouquíssimas pessoas ficaram ricas com o ouro ali. A maioria morreu de doenças, tiro, faca ou foi soterrada.

Saudosos da ditadura, os comandantes do Brasil atual veem novamente, neste modelo colonial de exploração, as ferramentas para a construção de um futuro que, desde 1500, tem mostrado como acaba.

No século 21, enquanto o mundo corre atrás de vacinas, uso sustentável do solo, microchips e outras riquezas produzidas a partir do dueto pesquisa e tecnologia, o Brasil corta bolsas de estudos, ataca a academia e posiciona o carro da história na rabeira do atraso. Esse carro é conduzido pelas obsessões pessoais de seu comandante.

No fim dos anos 1980, quando era ainda tenente do Exército, Bolsonaro foi enquadrado por seus superiores ao misturar o exercício militar com atividades extras em garimpos de ouro durante suas férias na Bahia. Segundo um relatório produzido na época, o futuro presidente já dava mostras de "imaturidade" e de "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".

Essa excessiva ambição, como se vê, não foi debelada quando saiu pelas portas dos fundos do Exército e se aninhou na política. Pelo contrário: foi empoderada com sua chegada ao Planalto, mesmo com todos os indícios de sua permanente "intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos", como já descreviam seus superiores.

Hoje a hierarquia se inverteu, a ponto de um general subalterno virar para o capitão e dizer "um manda, outro obedece".

A ordem de cima é passar o boi e o garimpo. O general Heleno autorizou.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL