Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, em 2023

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Meu filho me perguntou no começo da semana se a pandemia tinha acabado.
Estávamos num lugar aberto e as máscaras anti-covid, quando haviam, pareciam ter se transformado em adereço para bolsos, pescoços e orelhas. O distanciamento social era medido em centímetros, e não mais com as marcas de um metro e meio.
Ano passado, uma hora dessas, lembro do esquema de guerra para poder visitar parte da família, isolada desde março de 2020. Ficamos num hotel com todos os protocolos existentes e inexistentes. Entrávamos na casa das avós para dar oi de longe. Levávamos nosso próprio copo descartável. E nossa própria garrafa de água. Álcool em gel era o nosso perfume, sem contar as máscaras e as luvas descartáveis sacadas sempre que a situação exigia.
Lembro de, numa dessas visitas, ter encontrado e abraçado um amigo, meio que por impulso; passei três dias sob tensão à espera dos primeiros sintomas.
Neste ano, desde que os adultos da casa tomaram a segunda dose da vacina, o relaxamento foi inevitável. As viagens se tornaram mais recorrentes. As festinhas para no máximo quatro pessoas do ano passado viram o número de participantes se expandir. Quem oferece alguma bebida em seu próprio copo já não parece apontar uma arma no rosto das visitas. Os abraços andam menos econômicos — como era na vida antes de 2020, quando as demonstrações de afeto à brasileira marcavam nossa identidade como uma troca permanente de fluidos corporais.
Desde o início da pandemia fala-se que, ao final dela, o Brasil atualizará o software do Carnaval de 1920 — registrada por alguns historiadores como a maior celebração de todos os tempos e, não por coincidência, ocorrida ao fim de uma outra pandemia, a da gripe espanhola. As imagens gravadas da época podem provar.
Como uma mola comprimida que se quer expandir, a apoteose é aguardada como uma espécie de indenização pelos dias de reclusão. E já mobiliza grupos conservadores e haters da festa popular que tentam associar a propagação do vírus ao sacrilégio de quem bota o corpo para dançar durante quatro míseros dias do ano.
Seria, claro, uma falsa discussão se a pandemia estivesse mais controlada do que realmente está. Afinal, a essa altura, ninguém está proibido, sob risco de multa, de trabalhar, frequentar cultos, circular pelos centros comerciais e cumprir com todo o fervor a performance de cidadão de bem.
Acontece que o Carnaval não é só um cordão a separar pecadores infiéis de trabalhadores injustiçados. É uma celebração que potencializa e movimenta esqueletos, almas sedentas de encontros, amizades que já não circulam pelos espaços públicos; movimenta também o comércio, a indústria da música. A economia, enfim.
O nó é que, diferentemente de outros encontros presenciais, não se pula Carnaval desejando a paz de Cristo ao amiguinho ao lado. A chance de o vírus se espalhar como bomba é razoável.
Neste ano, os impasses relacionados à covid levaram a cervejaria Ambev a notificar a Prefeitura do Rio pedindo um posicionamento sobre o Carnaval de rua.
A preocupação faz sentido. Em dezembro, mês marcado pelas festas de fim de ano, viagens, despedidas e confraternizações, o número de contaminação no país voltou a subir. Hospitais estão lotados novamente.
Não fosse a vacinação, a bomba relógio que todo mundo em algum momento ajudou a acionar se converteria em uma carnificina, como foi no começo do ano passado. Vacinas salvam, podem evitar agravamento do quadro e as internações; mas não fazem milagres.
Diferentemente de 1920, quando o mundo ainda era um arquipélago de pequenos mundos distantes e sem tantos habitantes, a velocidade de circulação de corpos, produtos e serviços que marcam a sociedade contemporânea manda a todo tempo a fatura das disparidades econômicas e geopolíticas. Regiões onde a vacinação não avança são terrenos férteis para novas variantes do vírus — o que ameaça nações supostamente protegidas, num efeito cascata que em vez de desfechos transforma a crise do coronavírus em um grande dia da marmota, agravada pela propagação de outros vírus que já mandam um "oi sumidos" à medida que saímos das tocas.
Com tanta preocupação, é compreensível que muitos gestores públicos tenham anunciado o cancelamento das festas. Isso aconteceu em Belo Horizonte, Curitiba, Campo Grande, Fortaleza e (pecado dos pecados) Salvador.
Rio e São Paulo são exemplos do dilema. Na capital fluminense, após o pedido de posição da Ambev, o prefeito Eduardo Paes cancelou o Carnaval de rua, mas manteve (por enquanto) os desfiles no Sambódromo. Há quem aposte que este será o Carnaval com o maior número de blocos secretos da história. Alguns não serão tão secretos assim. Em São Paulo, mais de 600 blocos de rua ainda estão autorizados a desfilar. A festa pode parar no Autódromo de Interlagos.
E, nos casarões abarrotados de ricaços e influencers, certamente, ninguém vai levantar barreiras sanitárias à entrada — nem exigir passaporte vacinal, como pedem as autoridades.
Depois de dois anos, vai ser difícil conter o som e a fúria de foliões. Se descambar para o lado moralista da força, essa discussão, que deve ser feita sempre sob o olhar da saúde pública e coletiva, não tem como prosperar. Hoje a avaliação dos secretários de Saúde é que o melhor a fazer é cancelar o Carnaval.
É estranho pensar em normalidade das rotinas quando a maior festa popular do país segue suspensa? É. Mas, por enquanto, os riscos envolvidos não valem a alegria. Quem sabe no ano que vem?
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.