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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crise econômica consagrou a rifa como instituição nacional

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Imagem: iStock

Colunista do TAB

17/04/2022 04h01

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No mês passado, a ponta do lápis do orçamento doméstico apontou um rombo no teto de gastos da família. Conta vai, conta vem, descobrimos que a responsável pelo desfalque era uma instituição nacional que andava sumida nos tempos de bonança: a boa e velha rifa.

Não sei se vocês também perceberam, mas por aqui os convites para participar de campanhas de arrecadação do tipo têm surgido aos borbotões.

Não tem dia que algum amigo ou amigo de amigo não ofereça uma cartela para levantar fundos em prol de algum primo distante em apuros. Isso quando o apuro não é descrito em detalhes, e em primeira pessoa, pelo próprio interlocutor.

A abordagem acontece quase sempre nos grupos de WhatsApp. Há perrengues mais leves e outros mais graves. Por exemplo, o do vizinho que decidiu rifar o carro para custear o tratamento de um familiar doente. O acompanhamento, que exigiria dedicação integral, era inconciliável com o trabalho de autônomo.

Como não ajudar?

(O valor não era baixo — valia um carro, afinal —, mas com a adesão veio outra reflexão: não poderíamos aceitar o prêmio no caso improvável de sermos os sorteados.)

Às vezes a abordagem acontece em posts abertos no Facebook. "Ver" ou "não ver" é a primeira crise de consciência quando alguém entra na rede.

A depender da urgência, quem quer ajudar mas não está exatamente num momento em que pode abrir a carteira pode até fingir que não viu. E segue o jogo. Até a próxima rifa.

Tudo se complica quando a mensagem chega no privado. O tracinho azul muda todo o contexto.

"O que você vai fazer com um berimbau?", perguntou a "conge" ao saber que eu havia aderido a uma campanha em prol de um professor de capoeira que eu sequer conhecia (mas conhecia a amiga dele e a um amigo de uma amiga não se diz não).

Pior foi justificar que aderi também a uma campanha para ajudar a comprar novos instrumentos musicais para a banda de uma amiga cantora que prometia fazer uma apresentação na casa do vencedor ou vencedora. Detalhe: ela mora em outro estado.

Aparentemente, dizer em casa que aderi às campanhas porque gosto das pessoas que me ofereceram não é um argumento sólido o suficiente em tempos de crise.

Um dos dilemas de quem quer ajudar e nem sempre pode é encontrar uma forma de participar sem parecer sovina. Isso é especialmente constrangedor diante não só das rifas (pega mal comprar só um número da cartela?), mas também das campanhas de financiamento coletivo, bombadas em tempos de patrocínio escasso em que o mercadinho do bairro, assolado pela pandemia, já não pode pagar para ter o nome estampado no papel que embrulha o frango da quermesse.

Mas as campanhas chegam aos montes. Com elas, as dúvidas de ordem cívica e moral. Se eu der um valor mínimo, vai parecer que não me importo? Se eu disser que não tenho R$ 50 sobrando, vai parecer que não estou engajado na causa?

Porque as causas são sempre nobres: a manutenção de um site independente, um livro infantil, outro sobre dramas familiares.

Nunca é uma escolha muito fácil transitar no meio fio entre a falência e a fama de mau amigo.

Uma estratégia é priorizar o vínculo e não a causa. Nem sempre é a receita para o sucesso. Dias atrás, por exemplo, encontrei por acaso um conhecido da rua que estava ajudando a levantar fundos para um almoço solidário. A proposta veio de supetão e era preciso dar uma resposta ali na hora, debaixo do sol, enquanto tentava evitar que a cachorra escapasse da coleira e destroçasse o gato da vizinha. Afinal, é preciso estimar quantas pessoas boas vão participar para saber quantos quilos de carne serão comprados. Você diz que vai conversar em casa sobre a possibilidade de participar também, claro, inclusive gostaria muito, e no dia seguinte alguém bate à porta com o número do PIX. Como dizer não?

Pela mesma porta, outro conhecido perguntou no dia seguinte se poderíamos comprar a pizza da igreja. Vamos, claro. O que, além de bater na mãe, pode ser mais condenável do que negar ajuda a uma paróquia?

Quando chegou a pizza, chegou também a conta. E, com ela, o ajuste desses meses todos de inflação.

"Por que você foi pedir três pizzas do mesmo sabor?", perguntou a "conge", já pensando, ela mesma, em fazer uma rifa para pagar tanta rifa.

Tentei responder que não imaginava que uma pizza com duas fatias de queijo sobre um disco de supermercado custaria R$ 35 a unidade. Menos mal, porque uma da pizzaria do bairro já não sai por menos de R$ 60, sem borda recheada.

A crise inflacionou um pouco de tudo, inclusive os pedidos de socorro. É difícil dizer "sim" o tempo todo. É ainda mais difícil dizer "não".

No país que encurtou as possibilidades de saída e esgarçou o tecido dos direitos sociais, cada um faz o que pode para seguir no jogo.

Se você que lê este texto me ofereceu alguma rifa nos últimos dias, saiba que esse não é um desabafo nem uma reclamação. O interesse aqui é no fenômeno social e coletivo. Estamos todos na mesma crise. E não sabemos quando seremos os próximos a gritar por socorro.