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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Professora de Corumbá (MS) que descobriu Almir Sater valeria novela à parte

Gabriel Sater contracena com o pai, Almir Sater, em "Pantanal" - Reprodução/TV Globo
Gabriel Sater contracena com o pai, Almir Sater, em 'Pantanal' Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do TAB

11/05/2022 04h01

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Se você não está total ou parcialmente morto ou morta por dentro, é provável que tenha deixado escapar uma lagriminha ao ver Almir Sater cantando com o filho, Gabriel, em uma cena da novela "Pantanal". O trecho foi ao ar na última segunda-feira (10).

Depois de mais de 30 anos, o violeiro, cantor e compositor retorna à trama, agora como remake, e se reencontra com seu velho personagem Trindade, peão e violeiro interpretado agora por Gabriel Sater.

Na cena, o dono da chalana vivido por Almir é desafiado a mostrar que sabe de fato tocar viola. O olhar sério, quase segurando os sorrisos, trocado entre pai e filho, antecede o dueto que viralizou nas redes pela madrugada. É daqueles momentos da TV aberta de que não se esquece tão cedo.

Quem acompanha e admira a trajetória dos artistas, em shows ou novelas, viu um filme passar pela cabeça.

Um desses "filmes" está contado em um livro recém-lançado pelo amigo jornalista Rodrigo Vargas. Viabilizado pela Lei Aldir Blanc, "O propósito de Aline" (Entrelinhas) é a biografia de Aline Figueiredo, escritora, crítica de arte e animadora cultural nascida em Corumbá (MS) que levou as cores dos artistas pantaneiros a diversas exposições mundo afora. Vargas é também diretor de um documentário dedicado à artista.

Aline, hoje com 75 anos, é uma das principais responsáveis por descobrir, catalogar e dar visibilidade ao trabalho de seus conterrâneos. Sater, em certa medida, é um deles.

Meses atrás, quando São Paulo celebrou o centenário de sua Semana de 22, muitos se questionavam se a interiorização da riqueza em direção ao Centro-Oeste brasileiro resultaria também, quem sabe um dia, em movimentos fundadores do tipo. O livro mostra que esse movimento já aconteceu e ainda está acontecendo.

Em 1966, após bater à porta de Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, o todo-poderoso diretor do Masp (é uma longa e deliciosa história), Aline Figueiredo idealizou uma espécie de versão pantaneira da Semana de 22, a "Primeira Exposição de Pinturas dos Artistas Mato-grossenses". Na época, os estados não eram divididos.

Entre os destaques estavam obras de seu companheiro Humberto Espíndola, pintor e desenhista nascido em Campo Grande (MS) que deu formas e cores diversas à figura do boi, símbolo complexo e contraditório da pujança e do poder locais.

Mais adiante, o papel dos bovídeos na fundação da sociedade brasileira seria tema de "A propósito do boi", livro-referência de Figueiredo baseado em uma ampla pesquisa sobre o manejo do animal ao longo da evolução humana.

Mas o que uma cena de novela tem a ver com tudo isso? Já chego lá.

Muito antes de a região, seus personagens, artistas e linguagem serem temas da teledramaturgia ou exposições, Aline era uma professora de história da arte que reunia multidões em sala de aula.

Filha de fazendeiros, ela se apaixonou pela disciplina ainda na infância, após a amiga de uma irmã emprestar uma edição de "Moulin Rouge", que ela, num impulso antropofágico, devorou e levou para a vida.

Ao fim de uma dessas aulas, no Auditório do Centro Educacional Lúcia Martins Coelho, em Campo Grande, em meados dos anos 1970, um garoto tímido a procurou em busca de conselhos.

"Eu gosto muito das suas aulas, professora, mas meu negócio é música, sabe? Você poderia me ajudar?", perguntou o garoto com voz hesitante.

O diálogo é recontado no livro de Rodrigo Vargas.

"Claro! Avise para os seus pais que amanhã, logo depois da aula, a professora irá te levar até uma casa cheia de músicos. Você vai gostar de conhecer o pessoal. Topa?", convidou a professora.

O aluno não poderia estar em melhores mãos. Se o mundo é um ovo, o Pantanal era um universo inteiro.

Humberto, companheiro da professora, vinha de uma família tradicional de músicos e artistas e é irmão das cantoras Alzira e Tetê Espíndola.

Vargas conta que o menino concordou na hora, agradeceu e já ia saindo quando Aline o chamou de volta perguntando seu nome.

"Meu nome é Almir, professora. Almir Sater."

O resto é história — e essa história pode ser conferida no livro, nas músicas e, agora, na novela cantada e estrelada por pai e filho.

Como diz a música, cada um de nós compõe a sua história. É verdade. Mas o que seria de nós se não fossem outras tantas professoras como Aline Figueiredo pela estrada?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL