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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O trisal está no ar, e a razão para isso pode não ser tão romântica assim

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Imagem: Getty Images

Colunista do TAB

19/06/2022 04h01

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Houve um tempo em que homens e mulheres se relacionavam e tinham filhos com diversos parceiros e parceiras ao longo da vida e isso não representava uma violação da ordem moral.

Nos tempos primitivos, era impossível contar a ascendência a não ser pela linhagem materna, já que, devido à não-exclusividade das relações, não se sabia exatamente quem era pai de quem. Se alguém dissesse que o certo era ter apenas um(a) parceiro(a) até o fim da vida, seria espinafrado por atentar contra os valores da família tradicional.

Mas aí alguém descobriu que talvez fosse uma ideia, em vez de passar o dia na mata em busca de sustento, guardar o rebanho em cercadinhos e tirar a riqueza dali. Foi quando surgiu a ideia de propriedade. Com ela, surgiu também um modelo familiar compatível com o novo sistema de produção e de acumulação de riquezas.

Por uma dessas ironias da vida, à medida que as trocas comerciais se intensificavam, o intercâmbio de parceiros entrava em declínio —ao menos na parte visível daquelas fazendas.

Dali em diante, era mais negócio, literalmente, fechar a casinha e pensar num modo de garantir o direito e o usufruto daquela propriedade e de suas riquezas, sem dividir com ninguém além dos filhos. Foi quando nasceu o conceito de herança.

Os apetrechos surgidos então para proteger bens e direitos, a começar pela ideia de Estado, eram uma forma de o novo sistema vender casas, armas e cercas eletrificadas. Quem diria?

O velho Friedrich Engels, no fim do século 19, dizia que a monogamia foi a primeira forma de família não fundada em condições naturais, e sim por imposição econômica, derivada do triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva.

A solidez dessa instituição pode não sobreviver a uma espiada no que o(a) "conje" guarda no celular, mas chegou até nós como um modelo imbatível e indissolúvel para sobreviver a esses tempos.

Mas um espectro parece rondar esse conceito de família tradicional.

Não sei se é um fenômeno ou só palavra da moda, mas é difícil checar o noticiário hoje sem esbarrar em alguma história relacionada a pessoas que decidiram abrir seus relacionamentos a uma nova disposição geométrica, baseada em triângulos ou quadrados perfeitos. São os trisais e quartetos poliamorosos, onipresentes na lista das mais lidas de qualquer portal.

Algumas ferramentas permitem mensurar o crescente interesse pelo tema, como o aumento nas buscas por palavras-chave relacionadas a poliamor.

Tudo isso ocorre porque, em 2022, estamos mais abertos a novas vivências?

Por descobrimos do nada que o Raul Seixas tinha razão, ao dizer que o amor a dois empobrece e gasta com o tempo?

Porque estamos mais abertos a experimentar e provar que consideramos justa toda forma de amor?

Pode ser tudo isso, claro, mas também pode ser resultado de uma contingência que é sobretudo econômica.

Nas muitas histórias de famílias não tradicionais que lemos por aí, poucas confirmam estereótipos relacionados a uma rotina de pegação e juventude eternas, vidas (leia-se casas) separadas, acordos sem regras e sem limites. Também não confirmam uma suposta confusão relacionada à sexualidade que muitos procuram com lupas por ali.

A coisa é mais organizada do que parece, principalmente quando todo mundo resolve viver junto.

Quem dá a pista é Taya Hartless, americana de 27 anos que divide a casa e a criação dos filhos com o marido e um outro casal. Ela conta que não sabe quem é o pai biológico dos seus filhos e que isso tanto faz.

Quando questionada sobre os perrengues da vida a quatro, ela simplesmente responde: "Por que você não iria querer mais amor, mais apoio e mais mãos ao redor?"

As palavras "apoio" e "mãos" na frase acima são o ponto central dessa possível ruptura — ou retorno a outros tempos. E não estou me referindo às possibilidades do que fazer na cama.

Naquela família é Taya quem cuida da casa e dos bebês enquanto os "conjes" saem para trabalhar. A casa é a mesma, mas as tarefas e as despesas são tocadas a oito mãos.

Olhando assim, não há nada de muito revolucionário ali, mas talvez naquele quadrado cada vértice tenha encontrado seu equilíbrio perfeito entre funções e divisões de tarefa.

Há poucos anos, em tempos não tão primitivos assim, apenas o homem saía para trabalhar, enquanto a mulher cuidava e se sobrecarregava de todo o resto. Foi quando surgiu o trabalho doméstico não remunerado.

Mas uma coisa é criar os filhos num contexto onde todos os amigos e familiares parecem viver na mesma rua. Meus pais foram criados assim. Quando os pais precisavam sair de casa, havia uma rede de apoio composta por tias, avós e vizinhas para cuidar dos filhos.

Isso tudo se esgarçou.

Em tempos de aperto econômico, o casal precisa agora sair junto para trabalhar e nem assim dá conta de tudo em casa. A começar pelas contas.

O trabalho, afetado por graus diversos de precarização, já não é suficiente. Para a maioria dos reles mortais que não têm sequer uma casa para chamar de sua, a única propriedade é a força de trabalho — e ela se exaure com a idade.

A solidão a dois é, portanto, agravada pela pauperização da própria vida —mesmo quando não há filhos nesse cálculo. Entra aí na conta o endividamento, a gentrificação, a dependência do automóvel e outros percalços.

Por que, então, na ausência de redes efetivas de apoio (familiares, mas também o Estado), não ampliar o orçamento doméstico com novas forças produtivas? Uma espécie de república de estudantes, mas composta por adultos e amigos com benefícios que juntam as moedas no fim do mês para pagar a internet e o mesmo aluguel?

Pois é. O poliamor está no ar. E a razão pode ser mais econômica do que romântica.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL