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Caso Daniel Silveira expõe uso seletivo de tornozeleiras no país, diz autor
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Dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) mostram que atualmente mais de 80 mil pessoas são monitoradas eletronicamente no país — um salto em relação a 2015, quando 18,1 mil investigados ou presos do regime semiaberto eram monitorados por tornozeleira eletrônica
O equipamento se tornou uma espécie de pivô de uma crise entre Poderes desde que o deputado Daniel Silveira se negou a cumprir uma ordem judicial que determinava o uso do equipamento. A história da tornozeleira eletrônica foi contada em uma reportagem recente de TAB.
Em evidência desde a Lava Jato, quando passou a acompanhar empresários e políticos investigados, o dispositivo não ajudou a reduzir o número de pessoas encarceradas no país, como se imaginava. Pelo contrário: hoje mais de 900 mil pessoas cumprem pena em alguma unidade prisional do país, conforme levantamento recente do jornal O Globo.
Para o sociólogo Ricardo Campello, autor de "Curto-circuito: Monitoramento Eletrônico e Tecnopunição no Brasil", isso acontece porque, à exceção de personalidades, políticos e empresários, o monitoramento eletrônico no Brasil é utilizado como uma forma de punição suplementar. "Não há potencial desencarcerador em nenhuma medida punitiva."
Em outras palavras: a solução para a superlotação prisional criou também outros problemas. "Existe um uso seletivo das tornozeleiras", afirma.
Nesta entrevista, o autor defende que "os problemas produzidos pelo sistema penal têm de ser buscados fora do sistema penal".
Na justificativa do projeto de lei 175/07, que autorizou o uso da tornozeleira eletrônica no país, o então senador Magno Malta cita a "redução de custos financeiros para os estabelecimentos judiciários". Foi o que ocorreu?
O monitoramento eletrônico, para a maior parte das mais das pessoas monitoradas no Brasil, não substituiu o encarceramento. É um gasto adicional. O dispositivo tem sido utilizado para controle suplementar de saídas temporárias no regime semiaberto e supervisão do cumprimento de prisões domiciliares ou medidas em meio aberto. As tornozeleiras são direcionadas majoritariamente a pessoas que já teriam o direito de cumprir pena fora do cárcere ou de sair periodicamente em datas específicas. À exceção de personalidades, como políticos e empresários, o monitoramento eletrônico no Brasil é utilizado como uma forma de punição suplementar. Os beneficiários são os representantes da indústria da punição. Quando o argumento da "economia de recursos" se torna preponderante é um sinal de que os agentes formuladores de políticas públicas são pautados mais por uma lógica orçamentária e empresarial do que por preocupações com os efeitos destas políticas sobre a sociedade em geral. No Brasil, já está mais do que provado que a ampliação do sistema penal só agrava os problemas relativos à violência e à segurança pública. Não há estudos confiáveis do ponto de vista metodológico que demonstrem que o uso de tornozeleiras eletrônicas repercute na redução de custos para com o sistema penal.
Um dos argumentos mais citados para o uso da tornozeleira era o seu 'potencial desencarcerador'. Por que isso não aconteceu?
Não ocorreu porque não há potencial desencarcerador em nenhuma medida punitiva. Os problemas produzidos pelo sistema penal têm de ser buscados fora do sistema penal. Não se elimina uma técnica punitiva por meio de outra. A tortura e a execução não foram eliminadas pela universalização das prisões. Ao contrário, passaram a estabelecer com o cárcere uma relação de cumplicidade. Do mesmo modo, agora, o monitoramento eletrônico estabelece com a prisão uma conexão estreita de complementaridade. Em face da superlotação prisional e de todos os efeitos nocivos do encarceramento, é preciso buscar soluções alheias à lógica penal, exteriores a ela.
É possível dizer que o dispositivo concentrou poderes nas mãos de operadores do sistema?
Sem dúvida. É comum que os próprios juízes não dominem as formas pelas quais os sistemas de monitoramento funcionam. Isso acaba atribuindo um poder discricionário aos operadores diretos dos sistemas, os profissionais da ponta, os técnicos de monitoramento. Muitas vezes uma falha no equipamento é interpretada como um descumprimento da pessoa monitorada às regras de monitoramento. Quem sofre as consequências disso são essas pessoas sob monitoramento, com a regressão ao regime fechado ou com a imposição de sanções disciplinares.
A possibilidade de ser identificado por facções criminosas rivais ou milicianos é hoje a maior causa de tensão e sofrimento para apenados que usam a tornozeleira. A busca dos fabricantes por equipamentos menores e mais discretos resolve, de alguma forma, essa questão?
É uma questão fundamental e que tem sido ignorada pela magistratura, de um modo geral. Pouca atenção tem sido dada para o fato de que, em determinados territórios urbanos, marcados pela presença de milícias e grupos de extermínio, um equipamento fixo ao corpo que identifica o seu portador como um suposto criminoso acaba transformando-o em alvo de perseguição destes grupos. Tive uma série de relatos a respeito disso no Rio de Janeiro e no Ceará, por exemplo. Muitas vezes a pessoa prefere ficar na prisão. O uso de tornozeleiras em contextos de conflito e violência urbana tem uma série de implicações que nem passa pela cabeça das autoridades públicas e penitenciárias. É possível que a adoção de equipamentos mais discretos minimize problemas como esses, mas, ainda assim, o corpo do indivíduo permaneceria marcado. Se execuções e torturas são praticadas com base no reconhecimento de tatuagens, um equipamento visível chama ainda mais atenção.
Que discussão é possível levantar sobre o papel e as responsabilidades do Estado quando a figura do 'carcereiro de si' emerge no atual sistema?
A transferência da função punitiva para o próprio sujeito penalizado é uma tendência dos sistemas de justiça criminal na atualidade. No caso do monitoramento eletrônico, isso se realiza a partir de uma inversão técnica elementar: ao invés de inserir o corpo do indivíduo no interior de um sistema de vigilância, instala-se o sistema de vigilância no corpo do indivíduo. Do corpo na prisão passa-se à prisão no corpo. É um processo de incorporação do sistema penal, que avança. Isso se expressa também nos dias de hoje com o desenvolvimento de tecnologias de perfilamento genético de condenados e armazenamento de amostras de DNA de presos e presas. Cada vez mais, o elemento biológico é tomado como objeto principal de intervenção dos órgãos governamentais de punição e segurança, fomentados pela florescente indústria da biotecnologia.
Como você analisa a disputa em torno da tornozeleira eletrônica envolvendo um deputado condenado e indultado com o STF?
No Brasil, os únicos casos em que o monitoramento eletrônico é utilizado para evitar o encarceramento são os casos de figuras com poder político e econômico. Foi assim na Lava Jato e é assim no caso do Daniel Silveira. Ao ignorar as regras de monitoramento, se ele não tivesse o poder que tem, estaria agora em alguma cela de prisão. Acompanhei uma série de casos em que o descumprimento das condições judiciais relativas ao monitoramento teve por consequência o isolamento do indivíduo em cela disciplinar, as chamadas "celas do castigo". Em um caso particular, o sujeito chegou a ser espancado por agentes penitenciários depois de descumprir as regras de monitoramento. Mas eram pessoas comuns, desprovidas de privilégios políticos ou econômicos. Existe um uso seletivo das tornozeleiras. Quando se trata de pessoas pobres, elas são usadas para reforçar a fiscalização e o controle penal. Quando se trata de políticos ou empresários, elas são mobilizadas como alternativa à prisão e as suas regras de cumprimento se tornam extremamente flexíveis ou desimportantes.
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