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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Cosplay de pobre': ser filho de professor é ser privilegiado no Brasil?

Laura Sabino, estudante e influenciadora digital, e o pai, Eli Sabino, no campus da UFMG - Marcus Desimoni/UOL
Laura Sabino, estudante e influenciadora digital, e o pai, Eli Sabino, no campus da UFMG Imagem: Marcus Desimoni/UOL

Colunista do TAB

10/08/2022 04h01

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"Cosplay de pobre", descobri não faz muito tempo, é expressão da moda nas redes sociais.

Até onde entendi, ela é atribuída às pessoas bem-nascidas que gostam de posar de "humildões" e que escondem supostos privilégios para se posicionar, sem risco de serem enxotadas, nos debates sobre justiça e direitos neste país de meu Deus. Há quem use "cospobre" para abreviar.

Outro dia, a influencer marxista Laura Sabino conheceu de perto esse termo, ao dizer em uma postagem que não era fácil falar sobre o ex-presidente Lula na sua quebrada.

Teve quem correu para "desmascarar" a youtuber, dizendo que ela estava se fazendo de líder da classe trabalhadora quando, na verdade, seria uma filhinha de papai privilegiada. A prova? Seu pai era professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi o suficiente para colocar em Sabino o selo de "cosplay de pobre".

A postagem rendeu um suposto debate nas redes sobre se ter pai professor universitário era ou não privilégio.

A própria Laura Sabino escreveu sobre o ridículo da discussão em seu Twitter. Disse que seu pai nasceu na favela, começou a vender coxinha aos 14 anos e escreveu sua tese de doutorado em um barraco em um bairro periférico da região metropolitana de Belo Horizonte. Também deu aula para seu avô em uma escola de Educação para Jovens Adultos, trabalhou na rede municipal de ensino toda a vida e só em 2016 foi aprovado como professor da UFMG.

"Aí fica foda, né meus parceiros? Cês odeiam favelados mesmo", concluiu.

O tuíte tinha 20,4 mil curtidas e uma porrada de comentários, até o fechamento desta coluna.

Como se não faltassem temas urgentes para discutir às vésperas de uma campanha presidencial, parte dos engajados online queimou o seu, o meu, o nosso precioso tempo debatendo se professor, no Brasil, tem ou não as prerrogativas das cortes imperiais.

Laura não precisava descrever a trajetória cheia de pedregulhos do pai até chegar à universidade para mostrar que a resposta era mais do que óbvia.

"Galera confunde conquista com trabalho duro com privilégio. Tá uma doideira o país", resumiu Preto Zezé, ex-lavador de carros e hoje presidente da Cufa (Central Única das Favelas), na sequência da postagem.

Pois é. A não discussão levou a influenciadora a resgatar um vídeo antigo, em que ela discutia a diferença entre direitos e privilégios. Que esses conceitos sejam ainda temas confusos e correlatos é um dos muitos sinais de que a ignorância, no Brasil, não é fracasso, mas projeto político.

Em tempo de eleições, não vai faltar candidato para alardear velhos clichês de que a única saída para o Brasil passa pela sala de aula, que é preciso valorizar a educação do país e blablablá. O problema não é o diagnóstico, mas o que vem depois.

A classe "privilegiada" citada nos tuítes é a classe que provavelmente mais sofreu com ataques deste governo e militantes de direita nos últimos anos.

Basta ver o que virou, sob o governo de um extremista que prometia acabar com a "ideologia de gênero" em sala de aula, o Ministério da Educação, ocupado até outro dia por um ignorante que chamava universidades de antros de "balbúrdia" envolta de plantações de maconha e fábricas de drogas sintéticas.

Em meio a cortes de bolsas de pesquisas, Abraham Weintraub dizia ter como meta "atacar a zebra mais gorda" do orçamento das universidades — era como se referia ao salário dos docentes nas instituições federais. Chocava apenas por expressar em voz alta o projeto em curso pelos brucutus que tomaram o MEC de assalto.

Em março de 2021, o ex-ministro foi condenado a pagar R$ 40 mil pelas ofensas. O valor da indenização levava em conta a conduta intimidatória expressa todas as vezes em que o antigo capo bolsonarista chamava os professores de "doutrinadores", "preguiçosos", "desperdiçadores de verbas públicas", "predadores ideológicos disfarçados", "intelectualoides" e detentores de "regalias".

Realmente deve ser um privilégio e tanto ter o ofício jogado assim para a opinião pública e ainda encontrar pique para corrigir provas após passar horas em pé em uma sala abarrotada e quase sempre sem ventilação. Tem quem ainda queira receber salário por isso, imagina?

Pessoas como Weintraub (que o ostracismo o tenha) são o sintoma mais evidente de um país que não reconhece o trabalho intelectual como... trabalho. E que colocou seus professores do lado de lá do fosso que separa os peões e as castas privilegiadas no país. Não é menos curioso que nesse mesmo país existam tantos empreendedores mais identificados com os patrões do que com a classe trabalhadora da qual fazem parte e com quem deveriam juntar forças.

Falta, e muito, interpretação de texto e contexto ao país que decidiu tratar seus professores na base da botinada. Mas falta também consciência de classe — resultado de décadas de assédio e mordaças contra quem mais tem batalhado para tirar um país inteiro da masmorra da ignorância. Entender a diferença entre luta/direito e privilégio é uma das muitas lições que deveríamos saber de cor e que ainda estamos longe de aprender.