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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Deus e o diabo nas eleições: essa Bolsonaro deve à primeira-dama

Bolsonaro entre o ministro Ciro Nogueira e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, na convenção do PP que oficializou apoio ao PL e à tentativa de reeleição - Gabriela Biló/Folhapress
Bolsonaro entre o ministro Ciro Nogueira e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, na convenção do PP que oficializou apoio ao PL e à tentativa de reeleição Imagem: Gabriela Biló/Folhapress

Colunista do UOL

21/08/2022 04h01Atualizada em 21/08/2022 20h06

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O momento em que o diabo sai das sombras — ou dos detalhes, para lembrar a hipótese de Elio Gaspari — e toma o centro da campanha política já faz parte do calendário eleitoral.

Sua invocação é tão aguardada quanto a tradicional selfie enojada com o pastel de feira, a foto com criança no colo e o anúncio, seguido da desistência, da candidatura de José Luiz Datena.

Neste ano quem tirou o Tinhoso do descanso dos injustos foi Michelle Bolsonaro, a primeira-dama escalada pelo marido para reverter sua rejeição entre as eleitoras.

O trabalho alcançou sucesso parcial até aqui.

No último Datafolha, divulgado na quinta-feira (18), o ex-presidente Lula aparecia com 47% das intenções de voto, contra 32% de Bolsonaro. Entre as mulheres, o petista tem os mesmos 47% das preferências, mas o ex-capitão soma apenas 29%.

Em maio, Lula e Bolsonaro estavam empatados, na margem de erro, entre os eleitores evangélicos. Desde que a primeira-dama entrou em campo, o ex-presidente caiu para 32%, enquanto o atual chegou a 49%.

Quem acompanha a influência do segmento religioso na política estima que até 2040 os evangélicos serão maioria dos eleitores. Não precisarão de nenhum cosplay de crente para escolher seus próprios ministros para o Supremo Tribunal Federal.

Esse grupo de fiéis soma hoje 25% dos eleitores — ao menos foi essa a fatia ouvida pelo Datafolha de agosto.

Lula apostava que a memória dos tempos de bonança na economia durante seu governo daria a ele a chance de jogar parado a essa altura do campeonato. Se os bolsonaristas tinham os espantalhos da guerra cultural, como a farsa do "kit gay", o petista tinha a seu favor a lembrança de quando era possível comer carne em dias santos e feriados.

Até que Michelle resolveu lembrar aos irmãos que nem só de pão (ou de carne) vivem os homens e as mulheres.

Em um ato de campanha disfarçado de culto na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte — onde o ex-ator Guilherme de Pádua, assassino de Daniella Perez, encontrou a estrada de Damasco e se converteu —, a primeira-dama detonou uma bomba em forma de denúncia: sabe o Planalto? Pois ela garante: aquele lugar, durante muito tempo, foi um "lugar consagrado a demônios". Sim, demônios, no plural.

Naquela cozinha, ao que parece, os enviados das trevas faziam a sua versão com chifre e rabo do filme "Convenção das Bruxas". Lá jogavam truco o capiroto, o satanzin, o rincha-mãe, o muitos-beiços, o faca-fria, o fancho-bode, o cramulhão, o coisa-ruim, o canho, o que-não-ri e outros morcegões.

Agora não, jura a primeira-dama. Agora o Planalto é consagrado ao Senhor. Tem até um presidente de nome Messias habitando por lá. Ufa.

Uma das dificuldades desse momento da campanha em que o diabo é colocado na rua, no meio do redemoinho eleitoral, é que não tem agência de checagem capaz de averiguar se o diabo deixou ou não as suas digitais nos crimes a ele imputados. E já não temos entre nós o padre Quevedo para dizer que isso "non ecsiste", "son" apenas espectros fantasmagóricos projetados na parede pelas mãos ligeiras do gabinete do ódio.

O pior é que não tem aliança com os demônios do centrão, da rachadinha, do orçamento secreto, da milícia e outros vícios humanos capazes de franzir a testa da tia devota que ainda tem dúvida se vai dar um novo voto ou não para o sujeito que a mandou largar de frescura e parar de chorar pelo marido que morreu sem oxigênio à espera de um leito hospitalar em Manaus.

Com o diabo, afinal, não se brinca, e ninguém não quer lembrar do capiroto toda vez que olhar as colunas projetadas por Oscar Niemeyer no palácio oficial.

Essa o presidente deve à primeira-dama.

Como em campanhas anteriores, já virou tradição também o momento em que a esquerda — que passa quatro anos falando que o Estado é laico e os corpos em disputa também — vê uma banana do diabo do outro lado da rua e corre para escorregar.

O acidente de percurso transforma o debate eleitoral em uma área isolada, cheia de fitas zebradas sobre assuntos tabu onde se lê "não ultrapasse".

Aborto, descriminalização das drogas, direitos de minorias: não tem proposta humana para livrar o eleitorado de viver seu inferno na terra que não ganhe, a partir dali, o selo de "demoníaco", como se debate político no Brasil fosse uma grande caixa de Pandora habitada por um Coisa-Ruim só à espera da liberdade.

Em vez disso, e em meio a fake news de que pretende fechar igrejas em um novo mandato (algo que não fez nos dois primeiros), Lula respondeu que quem está possuído pelo demônio é o fariseu de seu adversário.

Enquanto isso, espalhava-se pelas redes um trocadilho de gosto duvidoso (feat. André Janones), compartilhado inclusive pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, mas com potencial ainda a ser avaliado: "Bolsonaro usa Deus, mas Deus usa Lula".

Até Ciro Gomes (PDT), que se gaba de não ter rabo preso com ninguém, andou se pitando de santo em sua cruzada contra os adversários ilustrados como demoninhos em sua página de campanha. Quando barata voa, não tem quadro técnico que não reze ajoelhado.

Seria mais fácil daqui até a eleição montar um grande "Passa e Repassa" para testar o conhecimento bíblico dos postulantes que fogem dos debates mundanos na TV como o diabo da cruz.

Ganha mais votos quem souber de cabeça a escalação dos 12 apóstolos, quem levou a arca da aliança a Jericó e qual material Jesus costumava usar para corrigir a vista dos fiéis.

Outra opção seria simplesmente botar um exorcista na frente de candidatos e jogar água benta para o alto. Roda o primeiro que derreter.

Que ninguém estranhe se alguma campanha oficial lançar no grupo do zap da sua tia algum depoimento bomba do próprio Mefistófeles, recriado em deepfake, contando que recebeu metade da alma de certo candidato via caixa 2 em troca da vitória nas urnas.

Nas primeiras linhas de "Grande Sertão: Veredas", obra fundamental de João Guimarães Rosa para tempos como este, o filósofo-jagunço Riobaldo descreve o dia em que um bezerro foi morto a tiros em uma fazenda porque tinha metade cara de gente, metade cara de cão. Pensavam que era o demo.

Coitado do bezerro: a feição humana o denunciava.

Em uma eleição mediada pelas armas engatilhadas à sombra de uma guerra santa, vale ouvir o testemunho do jagunço aposentado ao fim de sua travessia: "O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano".

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que o Palácio do Planalto é a residência oficial dos presidentes. Na realidade, o Planalto é a sede do governo -- a residência oficial é o Palácio da Alvorada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL