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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cartaz em Porto Alegre é um monumento ao pensamento binário e emburrecido

O Ministério Público pediu à Justiça Eleitoral a retirada de cartaz que convoca a população para os atos de 7 de Setembro - Twitter/paratyre
O Ministério Público pediu à Justiça Eleitoral a retirada de cartaz que convoca a população para os atos de 7 de Setembro Imagem: Twitter/paratyre

Colunista do UOL

17/08/2022 04h01

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Do tamanho, literalmente, de um prédio, um cartaz apócrifo instalado na fachada de um edifício em Porto Alegre virou alvo do Ministério Público Eleitoral por convocar atos em defesa de Jair Bolsonaro, agendados para Sete de Setembro, e associar a esquerda à censura, ao narcotráfico e a outras coisinhas más.

Retirado do local por ordem da Justiça, o painel ganhou as redes após uma postagem da ex-deputada gaúcha Manuela D'Ávila (PCdoB-RS), que neste ano desistiu de concorrer a uma vaga no Senado devido a ameaças que se intensificaram contra ela e sua família. As agressões são um oferecimento de quem afirma nas redes e nas instalações urbanas a disposição de ir à guerra em defesa da... família brasileira.

Cartazes do tipo são uma aula de como o pensamento binário tomou conta de corações, mentes e até das ruas do país — mensagens similares foram instaladas também em cidades do interior de São Paulo e de Goiás.

O pensamento binário se revela toda vez que pessoas ou entidades incapazes de enxergar nuances ou a complexidade das coisas tentam impor, com uma falsa equação exata, uma visão simplista, e por isso distorcida, do mundo. Geralmente essa visão corre em oposição a outra igualmente torta e rudimentar de si.

Em uma eleição orientada pelo pensamento mágico, baseada num falso dilema entre "bem" e "mal", "ordem" e "desordem", "virtude" e "vícios", "fé" e "pecado", o placar apócrifo de Porto Alegre é antes o sintoma do que a causa de um debate nivelado por baixo e que não dura dois minutos de exposição à realidade.

A mensagem afixada no edifício opõe a bandeira do Brasil ao símbolo do comunismo em um país onde a maioria dos brasileiros jamais chegou perto de alguma edição de "O Capital".

Não importa.

Os supostos virtuosos estão em campo em defesa da vida, da prisão de bandidos, do armamento, dos valores cristãos, da liberdade, do agro forte e da polícia, enquanto os inimigos lutam por aborto, pedem a liberdade a criminosos, o desarmamento, a ideologia de gênero, a censura, o MST e até o PCC. A disposição desses dois acrônimos em uma mesma fileira deveria dar o tom da desonestidade da turma, mas seguimos.

Fosse uma prova de redação, os autores ficariam em apuros para explicar qual a relação entre a vida que juram defender, o acesso a armas e o discurso de que inimigo bom é inimigo morto, tenha ele passagem pela polícia ou não.

Um giro rápido pelo noticiário mostra que revólveres e pistolas não têm sido usados para espalhar a paz, e sim os miolos de quem cruzou com os defensores da liberdade na hora errada — seja na rodovia das ideias, caso de um aniversariante que ousou fazer uma festa em homenagem ao ex-presidente Lula, seja na vida pública, onde qualquer discussão no bar ou trânsito equivale agora a uma sentença de morte.

A defesa da vida deveria vir com o selo da contradição em termos em um país liderado por quem debocha e se regozija tanto com a morte, como cansamos de ver durante a pandemia. Já são 682 mil vidas perdidas até o momento e a única palavra de conforto do presidente para seus familiares veio em forma de pergunta: vão chorar até quando?

Os avaliadores da prova poderiam questionar qual é, afinal, o sentido da suposta oposição entre valores cristãos, que são universais e não monopólio de facção política, e "ideologia de gênero", um espantalho que só existe na cabeça dos grupos mais amedrontados. O que falta ali é explicar qual parte do Evangelho baseado no amor, respeito ao próximo e na divisão dos pães e dos peixes os supostos defensores da mensagem de Cristo não entenderam.

Ficamos curiosos também para saber qual a contradição real entre agro forte e movimento coletivo de produtores rurais. Parte da força da agricultura no país, afinal, vem justamente da agricultura familiar e dos programas de segurança alimentar — que o atual governo fez questão de desmantelar, aliás. Talvez o mensageiro quisesse dizer "fazendeiros fortes" ou "terras concentradas".

Sob o atual governo, quem incita a violência, descumpre a lei e desacata a polícia (e também a Justiça) não ganha cana, mas indulto presidencial. Quem era investigado até outro dia se refestela em orçamento secreto e outras mamatas, enquanto o policial ou agente que apura e fiscaliza é mandado para a Sibéria da burocracia estatal caso esbarre nos interesses palacianos.

Liberdade para quem tem o rabo preso virou licença poética num governo cujo presidente constrange, ameaça e manda quem discorda dele calar a boca.

De todas as falsas dicotomias do cartaz, nenhuma é mais frágil à exposição da luz do sol do que associar os opositores à defesa do narcotráfico. O ato inaugural da era Bolsonaro, vale lembrar, foi marcado pela apreensão de cocaína em um avião militar durante uma viagem oficial. E quem agora se refestela no liberou-geral de armas e munições são justamente os integrantes de grupos criminosos que agora podem adquirir seu arsenal com nota fiscal e registro de caçador.

O período eleitoral é, ou deveria ser, o período adequado para confrontar ideias, tirar do caminho os espantalhos dos lugares-comuns e elaborar um diagnóstico preciso dos problemas (reais) do país. Há quem prefira apagar a luz e projetar fantasmagorias nas paredes dos prédios.

No Brasil, os debates em torno de projetos e ideias têm sido há anos marcados e decididos pelo espectro do pensamento binário e idiotizado. Isso tende a se agravar em um país liderado por quem está preso ainda às funções primárias do pensamento e que em três anos e meio não demonstrou capacidade alguma de reflexão ou apreensão de tonalidades.

A pergunta que fica é a mesma direcionada aos responsáveis pelo falso debate impresso em letras garrafais em Porto Alegre: quem financia mensagens como essa? E por quê?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL