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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mimada por podcasts, classe política 'esqueceu' para que serve o jornalismo

Ciro Gomes: "É a quarta e última vez que eu me candidato à Presidência" - Reprodução/ TV Cultura
Ciro Gomes: 'É a quarta e última vez que eu me candidato à Presidência' Imagem: Reprodução/ TV Cultura

Colunista do UOL

18/08/2022 04h01

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Em uma eleição disputada em outra era glacial, um candidato apoiado pelo governo federal na disputa para governador em São Paulo foi perguntado sobre o resultado do PIB no segundo trimestre daquele ano. O índice tinha acabado de ser divulgado e ia de encontro ao alinhamento do postulante com a pauta econômica de seus padrinhos políticos em Brasília.

Em uma fala improvisada, ele ligou o desempenho frustrante da economia a um período atípico, marcado pela baixa atividade do mês de junho, quando parte do país parou para assistir aos jogos da Copa do Mundo. Uma declaração no mínimo controversa e que certamente seria bombardeada por especialistas.

Com exceção de alguns repórteres locais, eu era um dos poucos "carrapatos" colados no candidato naquele encontro com apoiadores, em uma cidade do interior, que tinha tudo para terminar sem grandes notícias ou emoções. "Carrapato" é como é chamado o repórter escalado para colar em um postulante ao longo da campanha.

Antes de voltar ao carro e pegar a estrada até a redação, onde faria o texto consolidado sobre aquela e outras agendas do dia, telefonei para minha editoria e passei um resumo da última fala (Viram? Era uma outra era glacial). A menção à Copa ganhou destaque no site do jornal.

Mal entramos na estrada e o candidato já havia acionado Deus e o mundo para tirar a nota do ar. Ele jurava para meus chefes que não havia falado o que falara.

Ao redor da minha baia de trabalho, eu era esperado como se trouxesse na mochila o terceiro segredo de Fátima. Naquela época as declarações eram armazenadas em uma fita cassete, como faziam os fenícios. Mostrei aos chefes o que estava gravado ali. A declaração foi convertida em arquivo de áudio. A nota que o candidato imaginou ser ruim para sua imagem ganhou ainda mais destaque; agora reforçada com a palavra "ouça" na chamada. Eram os primórdios da internet.

Lembro dessa história para dizer que houve um tempo em que cada linha publicada na chamada grande imprensa, e aquele era um jornal de circulação nacional, poderia produzir uma hecatombe nos planos de qualquer candidato ou figura pública.

A frase mal pensada sobre a relação entre baixa produtividade e os jogos da Copa dizia muito sobre a forma como o candidato pensava sobre a conjuntura econômica do país. E era apenas uma linha em meio a um disputado espaço noticioso que antes de ganhar destaque passa por vários filtros de checagem e decisão editorial. Essa essência não mudou até hoje.

Naquele tempo, o candidato em busca de exposição poderia até não gostar daquele convívio com jornalistas, mas não tinha literalmente meios para fugir do embate com quem estava ali para fazer perguntas e apontar também as suas contradições. (Claro que sempre houve profissionais chapa-branca, mas aí é outra coisa).

Corta a cena.

Em uma entrevista concedida ao programa "Roda Viva" no começo da semana, o presidenciável Ciro Gomes, do PDT, demonstrou incômodo com o que chamou de "hostilidade" dos jornalistas escalados para sabatiná-lo. Parecia desacostumado. Uma das funções dos profissionais em roda era justamente confrontar o entrevistado e cuidar para que o encontro não se transformasse em palanque. Isso envolve interrupções constantes e aparentemente indelicadas. Ossos do ofício.

Em outros tempos, aquela seria a chance para qualquer candidato provar não só sua capacidade de elencar ideias para o país mas também de mostrar capacidade de reagir com inteligência a uma pergunta não combinada, sair da zona de conforto e voltar em segurança, sem deixar rastros de estupidez e despreparo pelo caminho.

Para isso serviam também os debates organizados por jornalistas profissionais.

Era aquilo ou o ostracismo.

Há quem dê de ombros e prefira evitar o embate.

Tudo porque, em 2022, existe um leque de opções aberto entre o que o candidato quer comunicar e o público que busca atingir. Não falo só sobre suas próprias redes, alimentadas com o conteúdo que convém ao candidato e seu estafe.

Já tem um tempo em que postulantes têm dado prioridade a conversas relaxadas e relaxantes com apresentadores de podcast dispostos a transformar uma suposta roda de entrevista em uma mesa de bar. Muitas vezes nem a cerveja falta.

O formato é interessante e serve como alívio, muitas vezes cômico, de uma relação geralmente mediada por dentes trincados e desconfiança mútua: a de que o entrevistado esteja performando e a de que o entrevistador esteja mal-intencionado.

Entre uma coisa e outra existe o dever da função, mas ele se tornou opcional a quem não quer ter as ideias escrutinadas. É o caminho perigoso para transformar qualquer mané em mito.

Quem não acompanha o dia a dia nem o histórico das autoridades já chega à conversa com um déficit de traquejo e informação que fica escancarado mesmo com uma prévia roteirização de perguntas. Esse déficit é a linha que divide o jornalismo do entretenimento e o microfone, de palanque.

Sem essas ferramentas, o candidato ganha um latifúndio de tempo e espaço para dizer, confortável, apenas o que quer. Em vez de uma coletiva quebra-queixo, é razoável que o entrevistado prefira agora passar o dia em um spa de ego do qual possa cortar e editar frases de efeito, ensaiadas e não rebatidas, para distribuir nos seus melhores ângulos aos seguidores que em geral não buscam um candidato, mas a própria salvação.

Ali o candidato pode dizer que estava presente às margens do rio Ipiranga quando Dom Pedro declarou a Independência sem qualquer risco de ter a veracidade do relato testada.

Nesse encontro de desejos, profissionais da imprensa se tornaram as pedras no sapato escaladas para jogar água e perguntas desagradáveis no chope oferecido pelo podcaster.

Entre cortes e recortes, as maiores audiências de uma era pautada por vídeos curtos e a economia de atenção são justamente as lacradas e patadas dessas autoridades a repórteres quem ousam atrapalhar seu passeio de moto e jet-ski com questionamentos indesejáveis. Os jornalistas viramos o amigo chato que quer falar de trabalho quando todos querem pé na areia, caipirinha, água de coco e cervejinha.

As patadas hoje são servidas para regozijo de um público cada vez mais refratário ao trabalho de apuração capaz de derrubar o castelo de cartas onde pensava habitar "A" verdade.

Essa tensão sobre o trabalho de quem sempre foi alvo, mas agora está ainda mais exposto a pedradas, não se resume apenas ao mundo político.

Na semana passada, diante de uma derrota para o arquirrival Palmeiras, o técnico do Corinthians se enfureceu ao ser questionado se ele temia perder o emprego. Vítor Pereira entendeu que se tratava de uma provocação e devolveu a resposta com outra pergunta: "Sabe quanto dinheiro tenho no banco?"

Como acontece também na cobertura política, não faltou torcedor que viu na pedrada uma reação natural de quem parece acostumado apenas às conversas amigáveis reproduzidas em podcasts e veículos oficiais ou setorizados — divertidos, bem-intencionados, dispostos a agradar a plateia, mas que passam longe do escrutínio jornalístico.

Essa busca pelos aplausos fáceis aprofunda ainda mais um fosso entre o que a figura pública diz e o que faz ou representa de fato.

O conforto, quando levado ao limite no campo dos afetos políticos, é perigoso. O risco de aceitar sem criticidade a arquitetura do metaverso é eleger um holograma sem pé nem cabeça no mundo real. Um mundo que grita, passa fome e é espancado quando se mobiliza.