Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aos amigos, tudo: por privilégios, empresários bolsonaristas endossam golpe

Grupo de empresários com Luciano Hang defende golpe em caso de derrota de Bolsonaro - Reprodução/Instagram
Grupo de empresários com Luciano Hang defende golpe em caso de derrota de Bolsonaro Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

18/08/2022 10h44

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Um golpe de Estado é o movimento que precede a suspensão de todo tipo de mobilidade, inclusive social. Em troca de apoio, dinheiro e obediência, elites dispostas a pagar o preço de um avanço autoritário cortam os galhos da escada que os levaram até ali e se encastelam, no alto do pódio, com a promessa de que os seus estarão a salvo.

Podem a partir dali responder qualquer reivindicação de quem ficou fora da festa à bala sem correr o risco de serem condenadas por crimes contra a humanidade. A ideia de humanidade é a primeira a ser suprimida em uma ditadura.

A aliança entre grupos dominantes e ditadores tem precedentes históricos. Foi assim na Alemanha de Hitler e também nas ditaduras latino-americanas do último século. Filmes como "Cidadão Boilesen" (2009) mostram como parte do empresariado não só endossou como participou ativamente de operações de repressão e tortura de opositores. O engajamento está na ordem da perversão e da prospecção de lucros. Em algum momento, os dois comandos se encontram.

Um país com campo aberto, sem freios e contrapesos que o impeçam de fazer tudo o que deseja, inclusive colocar para fora sua pulsão de morte, é o sonho de consumo de Jair Bolsonaro. Esse plano ficou, digamos, mais complicado com a mensagem emitida por parte da elite financeira e intelectual do país no último dia 11 de agosto, quando empresários e banqueiros assinaram uma das muitas cartas em defesa do Estado Democrático de Direito. Era uma resposta à ameaça do presidente de desrespeitar o resultado das urnas e se entrincheirar à força no poder.

A risca de giz no chão tem muito de apelo histórico, mas também de pragmatismo. A memória recente da ditadura, que durante 21 anos impediu os brasileiros de escolher seus presidentes e deixou como legado um país empobrecido e brutalizado, exige um cálculo de rota diferente em relação aos tempos da Guerra Fria. O risco agora é se isolar ainda mais.

Muitos já entenderam que o maior déficit hoje do país é o de normalidade. E que o patamar atual de alta tensão e risco de ruptura impede qualquer plano de médio e longo prazo avalizado pelas lentes da previsão e da estabilidade.

A risca de giz no chão das cartas democráticas deixou mais evidente os que estão indispostos a transformar o país no playground da família Bolsonaro & Agregados e os que querem botar fogo no parquinho.

Esses últimos são descritos pelo professor de filosofia da PUC-Rio Rodrigo Nunes, autor de "Do Transe à Vertigem", como "centenas de empresários falidos, roqueiros decadentes, atores fracassados, jornalistas de reputação duvidosa, subcelebridades 'ativistas', traders batalhadores e coaches medíocres" que encontraram no bolsonarismo a chance de dar uma guinada na carreira.

Revelada pelo portal Metrópoles, a reunião, em um grupo de WhatsApp, de empresários dispostos a endossar um golpe de Estado para manter Bolsonaro onde está — de preferência por mais 21 anos — em certa medida dá um nó nessa compreensão do fenômeno. O recalque ali é evidente, mas seus integrantes não podem ser chamados de fracassados. A maioria ali já estava no topo da pirâmide econômica antes de Bolsonaro ser eleito fazendo arminha com a mão.

Por que, então, resolveram flertar com uma rebelião que, no limite, pode matar a galinha de ovos de ouro de seus próprios negócios?

A resposta é complexa e escapa aos estereótipos associados ao tio ignorante e amedrontado com um mundo em transformação e que se converteu em militante ultrarreacionário. "Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo", disse, sem ouvir um "calma lá, fera" sequer, o dono de um shopping em área nobre do Rio.

Outro empresário, dono de uma marca de roupas, chegou a falar abertamente que "o jogo justo" só vale se o seu candidato for ganhar; caso contrário, "pontapé no saco e dedo no olho" estão liberados. (Vale perguntar se é assim que ele tratará o cliente disposto a votar em qualquer um dos candidatos que não seja o seu).

Como todos ali tem linha direta com o atual presidente, não seria exagero dizer que o ensaio de rebelião está desenhado. Esse ensaio demonstra, de saída, um racha no que podemos chamar de elite dominante: enquanto parte do PIB já visualiza a tragédia em curso, outra quer dobrar a aposta na radicalização.

Trata-se de uma elite cooptada, que já perdeu o pé da realidade, acredita em fantasmas projetados por grupos políticos oportunistas e que vende esforços de campanha em troca de proteção. Eles conquistaram, a partir de 2018, um grau de interlocução com o poder que agora não parecem dispostos a abrir mão. É como se dissessem: "Temos agora um representante de fato para cuidar da gente quando o oficial de Justiça bater às nossas portas para exigir o cumprimento das leis fiscais, trabalhistas e ambientais e não aceitamos nenhum privilégio a menos".

O que assusta a turma não é exatamente a volta do comunismo, que nunca passou nem perto de dar as caras por aqui, mas o fantasma contido na expressão "livre concorrência".

O comensalismo entre as duas espécies selvagens, uma política e outra econômica, está exemplificado na disposição do presidente de alterar a estrutura de um órgão federal que se colocava no caminho dos negócios de um dos empresários do grupo. Ali ele não demonstrava apenas poder, mas disposição para cumprir ordens. Questão de hierarquia.

O que os patrões querem estender pelos próximos anos, mesmo às custas do ordenamento democrático, é não apenas o privilégio de se reunir em um grupo de amigos do rei, mas de chefes do próprio rei — um rei tresloucado, frágil e amedrontado como eles. E que, justamente por isso, precisa de regras injustas a seu favor para garantir que tudo mude para que tudo permaneça como está. Nem que para isso precisem serrar as escadas, as pernas e os galhos da árvore onde se apoiam.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL