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'Essência' igual: jurista de 97 anos viu cartas por democracia de 77 e 2022

"A essência é a mesma, o objetivo é um só: defender a democracia. Basta o desrespeito às instituições democráticas", diz José Afonso da Silva, 97 - Simon Plestenjak/UOL
'A essência é a mesma, o objetivo é um só: defender a democracia. Basta o desrespeito às instituições democráticas', diz José Afonso da Silva, 97
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Danila Moura

Colaboração para o TAB, de São Paulo

12/08/2022 04h01

O pátio do Largo São Francisco estava tão lotado na manhã de quinta-feira (11) que parecia até Peruada, a tradicional festa da faculdade de direito com ares de Carnaval. Engravatados, sindicalistas, antigos alunos, uma artista fantasiada de flamingo, políticos, indígenas e estudantes se acotovelavam para conseguir o melhor ângulo para assistir à leitura da Carta pela Democracia nas lendárias arcadas no centro de São Paulo.

Com mais de 950 mil assinaturas, o documento faz referência à Carta aos Brasileiros, de 1977, considerada um marco na resistência à ditadura militar (1964-1985). A carta de 2022 contemplou assuntos como racismo e misoginia — e a inclusão também orientou a organização dos alunos, que fizeram uma força-tarefa para deixar o pátio acessível para cadeirantes e, graças a Ricardo Alexandre Teixeira de Lima Jr, 30, surdos foram incluídos na leitura do documento histórico.

Ricardo foi o intérprete de libras do ato, um dos poucos homens pretos no palco. Enquanto os oradores liam juntos as últimas linhas da carta ("Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!"), ele fazia a interpretação simultânea.

O intérprete começou a estudar libras aos 13 anos para realizar um sonho antigo do pai, morto muito jovem por enfarte. Ricardo sênior gerenciava linhas de produção em uma fábrica com funcionários surdos e não aceitava deixá-los excluídos. "Na época, pela falta de educação e acessibilidade, cegos e surdos pegavam só trabalhos braçais em que não era necessário 'falar'", relatou.

Carta pela Democracia, no Largo São Francisco, em 11 de agosto - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Carla e Ricardo, que fez a interpretação de libras dos diversos discursos do ato
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Carta pela Democracia - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Ativistas no ato no Largo São Francisco, no centro de São Paulo
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Concentração de manifestantes no Largo São Francisco, no centro de São Paulo
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A maratona de discursos do 11 de Agosto foi uma operação complexa para Ricardo e Carla Sparano, 45, que ficou sentada em frente ao amigo para sinalizar se algo teria sido interpretado errado. Um amigo surdo também ficou dando feedback imediato da leitura. "Se ele não estiver entendendo, não estamos interpretando certo."

Acostumados a trabalhar em eventos diversos, inclusive lives de "milhões de views" de artistas como Marília Mendonça e Bruno & Marrone, preparar-se, ouvindo antes as músicas do set-list, é essencial para "tudo sair dentro do controle". Desta vez, porém, os discursos do Salão Nobre não foram enviados ao trio, que se virou ao vivo.

Traduzir entonação, expressão corporal e palavras de cunho político em sinais não é exatamente simples. "Hoje, existe uma discussão na sociedade surda para falar de palavras como 'fascismo', 'democracia' e outros termos de contexto político. Não existe um 'padrão' e não podemos fazer movimentos aleatórios", assinala Carla. "É difícil convencionar, mas é muito importante que essas mensagens cheguem aos surdos, que são cidadãos e eleitores."

Revival

"Fora, Bolsonaro" ecoou no Largo São Francisco. Noutros momentos, no entanto, foi difícil ouvir bem tudo o que acontecia ao mesmo tempo no evento: ante o clima de reencontro de antigos alunos da casa, o áudio foi abafado pelo buchicho das diversas rodinhas de camaradas de décadas.

O inaudível também se fez notar: a leitura da carta gerou desconforto entre certos juristas quando suscitou os gritos de "Lula Lá" — um deles disse discretamente que "estava bom, mas agora o pessoal tá rasgando a fantasia".

Armínio Fraga Neto discursa na Faculdade de Direito da USP - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Armínio Fraga Neto discursa na Faculdade de Direito da USP
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Carta pela Democracia, no Largo São Francisco, em 11 de agosto - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Fernando Haddad, no ato no Largo São Francisco, no centro de São Paulo
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Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Benedito Vitor dos Santos, o "Vitão", lenda do Largo de São Francisco, era a maior celebridade entre os "alumni".

"A ideia de renovar a carta surgiu de antigos alunos. Estávamos relembrando os tempos da Peruada em que passávamos em frente a casa de Goffredo Telles, que lia em voz alta a carta de 1977", disse, lembrando da roda de bar onde nasceu a ideia, que foi levada à diretoria da faculdade. "Pensamos em algo menor, só para alunos. Felizmente, se tornou esse movimento enorme."

O jurista José Afonso da Silva, 97, foi uma das raras testemunhas que acompanhou tanto a leitura da carta original quanto a desta quinta-feira. Professor aposentado da universidade e secretário da Segurança Pública de São Paulo entre 1995 e 1999, ele se lembra do dia de 1977 como se fosse hoje. "A essência é a mesma, o objetivo é um só: defender a democracia. Basta o desrespeito às instituições democráticas."

Silva raramente é visto em solenidades e eventos da faculdade. Foi um acontecimento no meio jurídico.

Carta pela Democracia, no Largo São Francisco, em 11 de agosto - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Silva, 97, foi uma das raras testemunhas que viu a leitura da carta de 77 e a desta quinta-feira
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'Sou neutro para falar, não sou muito chegado na política, nem direita nem esquerda', diz Toninho
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Por volta das 9h, muitos idosos marcaram presença no ato — um pessoal que viveu muitos Carnavais e que não sente saudade nenhuma dos tempos da ditadura militar. "A população tem de sair à rua para demonstrar de que lado está", disse o advogado Eduardo Bueno, 68. "Estou aqui, enfrentando sol e chuva para que as gerações futuras não passem pelo que passamos."

Diferentemente do clima de "revival" dos antigos alunos, os funcionários da faculdade encararam o ato como mais um dia de labuta, o mais profissional possível. Trabalhando na limpeza, antes, durante e depois do ato, as auxiliares preferiram não se manifestar sobre a ideia de democracia. Com otimismo, porém, dizem que apostam na humanidade: "Nós podemos sempre melhorar como seres humanos. Basta querer, confiar e seguir."

"Sou neutro para falar, não sou muito chegado na política, nem direita nem esquerda", desconversou José Antônio de Araujo, conhecido carinhosamente como Toninho, funcionário desde 1989. "Foi mais um evento para mim. Concluído com sucesso."

Carta pela Democracia - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Imagem: Simon Plestenjak/UOL