'Não tem lugar para ódio': furries brasileiros se reúnem em convenção
"Você viu um dragão vermelho passando por aqui?", perguntou um jovem usando luvas e um rabo de pelúcia preso na parte de trás da calça. "Dragão? Acabou de entrar", respondeu o segurança, em tom sério, apontando para a porta de um dos salões principais do Hotel Sheraton. O jovem agradeceu e seguiu, fazendo o segurança esboçar um sorriso discreto, claramente se divertindo com o segundo dia da BFF (Brasil FurFest), a principal convenção do país do furry fandom que aconteceu entre 15 e 17 de julho em Santos, no litoral de São Paulo.
Furry é peludo, em inglês; fandom, subcultura. Furry fandom é uma comunidade formada por pessoas de origens, idades e gêneros diversos, unidas em torno de um interesse em comum: personagens antropomórficos, com traços de personalidade e características físicas humanas misturadas com animais.
Na quinta edição da BFF, centenas de pessoas de todos os cantos do Brasil e onze países circularam pelo quarto andar do Sheraton trajando fantasias coloridas e peludas. Era quase como se a seção de bichinhos de pelúcia de uma loja de brinquedos tivesse tomado vida. É por isso que a pergunta sobre um dragão vermelho para o segurança soou perfeitamente plausível depois de uns segundos de assimilação mental.
As fantasias (o termo correto, na verdade, é "fursuit") são criações autorais dos próprios entusiastas, mas a comunidade também une fãs de animações famosas como "O Rei Leão", "Space Jam", o video game "Sonic" e até fanáticos de mascotes de esportes — havia inclusive um Fuleco circulando no salão principal, despertando traumas antigos da Copa de 2014.
Furries têm uma presença online muito forte desde a formação de comunidades virtuais nos anos 1990, mas os encontros presenciais são essenciais para a subcultura, até porque ela nasceu entre frequentadores de convenções de ficção científica e quadrinhos nos anos 1980.
"A convenção é a materialização da comunidade furry no mundo real", conta o designer Danny Lauderdale, 39, chairman da BFF. "Pros furries é uma oportunidade única de ver amigos de outros estados."
Desde a primeira BFF, em 2016, o evento não para de ganhar adeptos e curiosos. O primeiro festival reuniu cerca de 160 pessoas e ocorreu graças a uma campanha de crowdfunding. Em 2022, os organizadores contabilizaram 872 pessoas em três dias de evento, com uma equipe de 32 pessoas na organização. "A BFF cresceu tanto por causa da diversidade, inclusive da diversidade de gênero."
No fim da tarde de sábado (16), eles fizeram uma ação que arrecadou mais de R$ 30 mil para a SOS Vida Pet Litoral, organização que ajuda acumuladores a criar abrigos de resgate de animais. "A caridade é parte de todas as convenções furries. É uma forma da comunidade fazer algo pelo mundo", diz Lauderdale.
Fursuit e fursona
Esta foi a primeira convenção furry de L.C., 16, de Goiás. "Minha fursona é uma idealização", conta o adolescente, conhecido como Misaki, um veado antropomórfico extrovertido e sociável. "Sou muito introvertido e Misaki gosta de contato social, festas e tudo mais."
A fursuit reflete uma espécie de alter ego que os membros criam para interagir dentro da comunidade: personagens autorais a partir da imaginação de cada um. No vernáculo furry, o alter ego se chama "fursona".
"O veado é meu animal favorito. Passei cerca de um ano desenhando e pensando no design, até encomendar minha fursuit, que demorou dois anos para ficar pronta", afirma.
A fursuit não é obrigatória, mas é bastante almejada. É possível fazer uma com as próprias mãos ou contratar um artesão especializado. Por ser algo muito pessoal e cheio de detalhes, a produção é cara e demorada — algumas chegam a custar R$ 15 mil.
"Dependendo da fursuit, demoro entre três semanas a dois meses de produção", explicou a artista Kyara Bakster, 25, de Guarulhos (SP), no bazar da convenção. Fursuits parciais, compostas por cabeça, luvas e rabo, custavam a partir de R$ 1.500. É possível encomendar desde uma fursuit mais simples até criações mais elaboradas com olhos brilhantes, bocas que se mexem e outros efeitos especiais.
"Tudo bem se eu colocar minha fursuit?", perguntou Kyara, antes de ser fotografada pelo TAB.
Párias acolhem párias
Muitos furries também são ligados a outros hobbies como RPG, vídeo games, mangás e animes. Entretanto, a comunidade furry é alvo constante de bullying e ódio virtual por membros dessas comunidades "vizinhas". É como se os furries fossem os nerds da sala de aula, mas a sala de aula é do tamanho da internet inteira.
Muito desse ódio é direcionado a uma parte da comunidade que produz conteúdo erótico temático (vamos falar mais disso adiante), mas também porque os furries tendem a ser acolhedores com todos os tipos de pessoas.
Não é incomum conhecer furries neuroatípicos, com déficits de comunicação e interação social — a possibilidade de ter uma fursona ajuda muitas dessas pessoas a criar amizades. Para eles, usar uma fursuit não é só um hobby, mas um jeito de conseguir interagir com mais tranquilidade.
"Sempre tive um certo receio de participar de uma convenção porque tenho um pouco de fobia social", diz Pedro Mecer, 32, engenheiro de software, que veio pela primeira vez a uma convenção. "A fursona ajuda bastante porque é um ponto de contato com outra pessoa."
Poder criar um alter ego de forma livre, sem amarras sociais, também é um atrativo para quem faz parte da comunidade LGBTQAI+. Muitas pessoas trans, não binárias e queers participam da convenção brasileira. O número de mulheres também é mais equilibrado do que em outras comunidades nerds.
O próprio L.C., que se identifica como homem trans, conta que o acolhimento em relação à pauta de identidade de gênero foi essencial para sua permanência na comunidade desde os 12 anos.
"O furry fandom já tem um histórico de ser pária, então ele acaba abraçando pessoas muito diferentes", comentou o escritor Hreter, 29, sobre o acolhimento LGBTQAI+ da convenção. "Muito do preconceito que vem da comunidade gamer e otaku está relacionado à LGBTfobia."
Hreter vive no interior de São Paulo e, para preservar sua intimidade, pediu para ser identificado na reportagem apenas com seu nome furry, representado por um cervo de chifres dourados. Já lançou dois livros na comunidade, onde desde 2008 fez a maior parte de seus amigos. "Furries são muito unidos", afirma. "Consegui meu emprego atual por indicação de um furry."
O lado adulto
Um dos motivos que levam muitos furries a evitar mencionar na vida civil que fazem parte da comunidade é o preconceito em torno da parte adulta da subcultura, que produz conteúdo pornográfico, chamado de yiff — que não é unanimidade entre os adeptos.
Como a comunidade tem muitas crianças e adolescentes, a regra geral é que nenhuma arte erótica seja exibida nas convenções e que todos os perfis nas redes sociais alertem o conteúdo adulto para evitar a interação com menores. "É o outro lado da cultura. Todo grupo tem uma questão parecida", explica Hreter.
Nos EUA, o furry fandom chegou a ser criticado após a descoberta de que predadores sexuais usavam fursonas para se aproximar de crianças. "Um dos grandes motivos disso era preconceito. Mas fui além do meme e vi que há um esforço muito grande da comunidade em tolher esse tipo de situação", conta Pedro Mecer, na companhia da amiga, Julia Barcha, 30, artista plástica.
Ainda que seja possível encontrar nas bancas de artistas umas ilustrações de lobos com abdômen definido, no geral, o que mais se vê são desenhos bonitos sem conotação sexual e crianças na companhia dos pais tirando fotos com furries trajando suas respectivas fursuits.
Viver da arte
Hreter namora há três anos com A.G., 32, conhecido na comunidade como um cavalo chamado Odd.
A.G. é homem trans e membro da comunidade desde os 13 anos. "Encontrei o furry fandom porque era obcecado por 'O Rei Leão' e descobri através de uma comunidade digital bem antiga de fanáticos pela animação", lembra. Hoje, é um dos artistas que ganham a vida fazendo encomendas de outros furries.
Gamibri, de Itaberaba (BA), também é uma artista popular no fandom. No bazar, seu estande era o mais disputado. Com milhares de seguidores no Instagram, ela faz conteúdo adulto temático furry, mas afirma que o que mais a atrai é a possibilidade de desenhar animais livres na natureza.
Graças ao interesse da comunidade furry, há artistas que vivem de encomendas de suas ilustrações, HQs e outros produtos. "Os eventos evoluíram bastante e abriram espaço para muita gente explorar mais formas de artes", diz Renato Clarein, 28.
Política peluda
Um dos convidados de honra da BFF foi o norte-americano Uncle Kage, 57, um dos membros mais destacados da comunidade furry internacional.
Nos EUA, os furries tiveram problemas políticos em 2017, quando Donald Trump foi eleito e recebeu apoio massivo de grupos de extrema direita. Na época, parte do fandom teve de se organizar para expulsar furries que se diziam neonazistas e supremacistas brancos. "A política sempre foi algo muito vísivel na nossa comunidade", comenta Kage, chairman da Anthrocon, a maior convenção furry norte-americana.
"A intolerância não pertence aqui. A natureza do furry sempre será progressista. Então, não tem lugar para ódio."
A maioria dos furries presentes no BFF diz que política não é um assunto comum, mas que a comunidade não atrai conservadores. "Se tiver dois bolsonaristas furries já é muita coisa", exemplifica Hreter. "Normalmente, são adolescentes mais edgy que acabaram de descobrir o Discord."
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