Fuga das girafas: o mistério dos animais confinados em resort de luxo no RJ
No dia 14 de dezembro de 2021, 18 girafas tomavam sol em um resort em Mangaratiba, no estado do Rio de Janeiro. Seis delas correram em direção à cerca que limitava o espaço onde estavam. Estavam tentando fugir, mas foram recapturadas. Horas depois, três das fugitivas morreram. Exames feitos nos cadáveres constataram a presença de substâncias associadas a estresse profundo.
Essas girafas chegaram ao Rio de Janeiro em novembro. Vieram da África do Sul, em uma importação autorizada pelo Ibama, porém, como se percebeu mais tarde, com várias contradições. A ideia era que elas ficassem por um período no Portobello Resort & Safari, um espaço de luxo, frequentado por celebridades e outros endinheirados.
O site do empreendimento afirma que são 300 quilômetros quadrados de área, onde vivem 500 animais da fauna brasileira, europeia e africana. Nas fotos, é possível ver dezenas de espécies, para deleite dos hóspedes, que pagam cerca de R$ 3 mil a diária. O resort promete ainda passeios em veículos 4 x 4 que proporcionam "uma experiência única e inesquecível". Esses tours, exclusivos para clientes do hotel, custam R$ 110 por pessoa.
Ali, segundo biólogos e ativistas interessados no bem-estar dos animais, as girafas se adaptariam para depois serem levadas ao BioParque, o zoológico da cidade do Rio, que pertence ao Grupo Cataratas. O documento de compra diz que cada girafa custou cerca de R$ 50 mil.
Na prática, a operação não é tão glamurosa quanto as cifras sugerem. Como são animais de origem selvagem, acostumados com a vida livre, girafas precisam ser domesticadas. Só então poderão interagir com o público sem que tentem fugir.
Passar um período num resort não parece tão atrativo para elas quanto é para a classe alta brasileira. "Elas estão confinadas há meses para que sejam domadas, para que seu espírito seja quebrado. Precisam ser colocadas em condições de opressão para que possam ser contidas, manipuladas e manejadas segundo o interesse do proprietário", conta o biólogo Frank Alarcón, interessado na causa, que criou a página Liberdade para as Girafas, no Instagram.
Muitas versões de um mesmo relatório
Todo o processo de importação foi autorizado pelo Ibama. No entanto, o laudo inicial, feito em janeiro por técnicos, dizia que os recintos que abrigam as girafas em Mangaratiba estariam fora dos padrões mínimos de conforto. As fotos que ilustram essa matéria foram tiradas desse documento.
"Cada dois animais deveriam ocupar um espaço de 600 metros quadrados, porém, por lá, grupos de três ocupam um espaço de 31 metros quadrados", diz o biólogo Frank Alarcón.
Outro ponto que chama a atenção é o processo que permitiu a viagem das girafas da África do Sul para o Brasil. O relatório trazia a letra W (de wild, selvagem em inglês) ao se referir aos animais. Isso quer dizer que foram capturados na natureza. O artigo 18 de uma portaria do Ibama impede que animais retirados da vida selvagem sejam comercializados. Levanta-se assim a questão: como essa importação foi autorizada?
Com tantos problemas, o relatório foi questionado e o documento encaminhado ao Ministério Público. À época, os fiscais do Ibama autuaram o BioParque por maus tratos. A Polícia Federal chegou a fazer uma operação no local, quando dois funcionários foram detidos e soltos mais tarde. Seis meses depois, resultado final da perícia feita pela PF ainda não foi divulgado.
Por fim, o relatório acabou sendo refeito com um parecer favorável à importação das girafas. O Ibama informou que, após notificação, os recintos foram adequados conforme a legislação e que o instituto segue acompanhando a adaptação dos animais, por meio de vistorias frequentes. Não há, entretanto, fotos do local depois do primeiro laudo. A reportagem tentou visitar o resort para verificar as condições das girafas, mas o estabelecimento não respondeu as solicitações.
Roberto Cabral, um dos fiscais do Ibama autor do laudo que acusa o Grupo Cataratas de maus tratos, chegou a ser afastado do cargo por alguns meses e só depois realocado às suas antigas funções. Ele afirmou à reportagem que prefere não falar sobre o assunto. Procurado para comentar essa situação e os relatórios que se desmentiam, o Ibama não respondeu as solicitações feitas pela reportagem ao longo de uma semana por e-mail e por telefone.
Justiça confusa
Um dia depois da operação da Polícia Federal, no dia 27 de janeiro, a juíza Neusa Regina Larsen de Alvarega Leite, da 7ª Vara de Fazenda Pública do Rio, concedeu liminar para remoção das girafas do recinto em Mangaratiba no prazo máximo de 48 horas, com multa diária de R$ 5 mil para o BioParque em caso de descumprimento. Isso custaria cerca de R$ 750 mil para o resort até o início de julho.
Mas o caso foi transferido para a Justiça de Mangaratiba, que se negou a aceitá-lo. Com isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ainda vai decidir quem será o responsável pelo assunto. Não há prazo para que o TJ se pronuncie. As girafas seguem esperando. O Grupo Cataratas diz não saber quando vão sair de lá.
No mês passado, a TV Globo afirmou em uma matéria que o procurador da República responsável pelo caso, Jaime Mitropoulos, determinou que o Instituto Estadual do Ambiente, o Inea, realizasse com urgência uma vistoria para checar as condições de saúde, acomodação e bem-estar geral das girafas. O Inea declarou que realizou seis vistorias no local desde a chegada das girafas. E que o novo espaço onde elas ficam é amplo, arejado e em condições de abrigar animais de grande porte.
O que diz o Grupo Cataratas
O Grupo Cataratas afirmou em nota que reitera a responsabilidade com as girafas e com o programa de conservação e informa que repudia qualquer "caluniosa ilação sobre a prática de maus-tratos aos animais".
"As girafas estão bem e evoluindo positivamente a cada dia, (...) acesso às áreas externas de até 900 metros quadrados, com progressão de acordo com o comportamento de cada indivíduo. A aclimatação é conduzida por uma equipe técnica especializada e com ampla experiência e validado (SIC) por especialistas em manejo dessa espécie para que os animais possam conviver em amplos espaços com segurança, acompanhado (SIC) pelos órgãos competentes. O BioParque do Rio reforça sua absoluta responsabilidade com o manejo de fauna e com projetos de longo prazo de restauração da natureza, amparados em educação, pesquisa e conservação de espécies", informava no texto.
Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, o que animais precisam é de uma auditoria independente feita por biólogos que não estejam ligados nem ao BioParque nem ao Resort Portobello, pois somente pessoas escolhidas pelo Grupo Cataratas têm tido acesso pleno às girafas.
O biólogo Márcio Augelli, que também está debruçado no caso desde que as girafas chegaram ao Brasil, tentou, na quinta-feira (7), entrar no Resort Portobello para ver as girafas com membros da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. A visita foi negada. "Onde está a Justiça? Estou tentando há meses ver como estão esses animais e não consigo", questionou Augelli.
Uma nova tentativa de fuga não é descartada. "Mesmo que venham a ser divididas em outros estados, cidades, estabelecimentos, essas girafas podem novamente tentar fugir. Como são animais de fisiologia delicada, podem vir a óbito na captura, como aconteceu com as três que morreram em dezembro do ano passado", afirma o biólogo Frank Alarcón. As girafas completaram oito meses de confinamento nessa segunda (11).
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