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Sombra, água fresca e vaginas artificiais marcam carreira do touro Sherlock

O touro Sherlock, ícone brasileiro na produção de sêmen bovino - Rodrigo Ferrari/UOL
O touro Sherlock, ícone brasileiro na produção de sêmen bovino Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Rodrigo Ferrari

Colaboração para o TAB, de Delta (MG)

10/07/2022 04h01

Na cultura popular e na vida real, certos bovinos alcançaram o status de lenda. Famoso no circuito dos rodeios, Touro Bandido derrubava todos os peões que ousavam montá-lo. No folclórico Boi-Bumbá, a história gira em torno da ressurreição de um animal que acaba morto por um homem muito pobre cuja esposa, grávida, fora tomada pelo desejo incontrolável de apreciar um bom prato de língua bovina.

Sherlock, touro brasileiro da raça nelore, é ícone. Quem o vê na plenitude de seus 10 anos, repousando o corpanzil de uma tonelada no chão fresco, em Uberaba (MG), talvez nem faça ideia de que está diante de uma estrela de fama mundial.

Sua aposentadoria, anunciada no fim de junho, ganhou destaque até na mídia internacional. A veterinária Rafaela Cava, responsável pela comunicação do Rancho da Matinha, lugar onde Sherlock nasceu e deve passar o restante de seus dias, conta que pessoas de Nebraska, nos Estados Unidos, conheciam a saga do brasileiro.

Criado com humanos desde cedo, Sherlock é manso feito o Ferdinando da animação, que passava os dias no pasto, apreciando o aroma das flores. O que o torna tão célebre é sua libido e sua capacidade de ganhar peso fácil, consumindo menos alimentos. Econômico e sexualmente voraz, ele vive rodeado de árvores.

Aos 18 meses de idade, seus donos perceberam que ele poderia se tornar um craque da reprodução bovina. Talvez nem imaginassem, porém, que ele viesse a se tornar o Cristiano Ronaldo — ou o Messi — da produção de sêmen. Sherlock foi mandado a uma central em Delta, município vizinho a Uberaba, onde permaneceu nove anos ofertando material genético para o mercado pecuarista, período em que legou ao mundo 540 mil doses de esperma e mais de 300 mil filhos e filhas, espalhados em cerca de mil rebanhos no Brasil e em diversos países do mundo.

A veterinária Rafaela Cava, ao lado do Sherlock, já aposentado e de volta ao Rancho da Matinha, onde nasceu - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
A veterinária Rafaela Cava, ao lado do Sherlock, já aposentado e de volta ao Rancho da Matinha, onde nasceu
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Vida mansa

Na maior parte do tempo, a rotina de aposentado de Sherlock pouco difere do período em que esteve na Central ABS, pertencente a uma multinacional norte-americana onde vivem os touros que estão no topo da pirâmide bovina, em termos de genética. No caso, ele permanece o tempo todo descansando à sombra e também ruminando um cardápio altamente balanceado, elaborado sob a orientação de nutricionistas. "O verdadeiro prazer dele é se alimentar", explica Cava.

Na época em que esteve na central, além de usufruir dos gozos culinários, Sherlock e seus demais colegas de "profissão" tinham a missão de produzir sêmen, vendido a produtores de gado.

A coleta e o manejo dos animais que participam desse processo envolvem em torno de 40 profissionais. Um deles é Márcio Caetano, 43, que trabalha há 18 anos como coletor. Ele foi uma das pessoas que mais tempo permaneceu com Sherlock, nos anos em que o touro viveu na unidade. "Sempre foi um bicho muito tranquilo e dócil", elogia.

A coleta é sempre feita no período da manhã. Os touros são buscados em suas baias e levados a um local específico na propriedade de 250 hectares, onde aguardam sua vez, como se estivessem na sala de espera de um consultório médico. Antes de a coleta começar, Márcio precisa higienizar o prepúcio dos machos, com uma solução que elimina os germes. A medida visa evitar contaminações no esperma que será armazenado.

Márcio Caetano com Goiaba, a vaca manequim da Central ABS, onde Sherlock vivia - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Márcio Caetano com Goiaba, a vaca manequim da Central ABS, onde Sherlock vivia
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

'Vaca manequim' e vagina artificial

Na esperança de aprenderem a se comportar como "alfas" no complexo mundo das relações amorosas, os garotos certamente ficarão decepcionados ao saber que, na natureza, a palavra final na hora de cruzar será sempre da fêmea.

Para a sorte dos ex-colegas de Sherlock, as vacas que trabalham nas centrais são condicionadas a aceitarem numa boa as tentativas de monta feita pelos touros. Talvez por não serem quaisquer fêmeas, mas sim manequins. Elas nem chegam a ser penetradas durante o processo, que envolve sempre dois profissionais — além do coletor, um manipulador que, ao contrário do que o nome possa sugerir, está ali para segurar os bichos pelas rédeas e garantir que tudo ocorra com segurança.

Goiaba tem aproximadamente 5 anos e é uma das vacas manequins da central. A reportagem do TAB que visitou o local teve a oportunidade de acompanhar uma demonstração feita entre ela e o Touro Tornado, de 6 anos.

No pasto, a tendência é que a monta só ocorra se a vaca estiver no cio e com disposição para encarar o macho em questão. Na coleta artificial, porém, tanto touro quanto a manequim estão condicionados a seguir o ritual. Tornado se aproxima de Goiaba e cheira suas partes íntimas. Em seguida, passa a lamber suas ancas e o dorso, como se a acariciasse. Leva alguns minutos até que ele tente a primeira subida, mas ele logo desce e volta a fungar em volta da vaca. O tempo dessas preliminares costuma variar de animal para animal.

Demonstração do 'namoro' do Touro Tornado com a vaca manequim Goiaba - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Demonstração do 'namoro' do Touro Tornado com a vaca manequim Goiaba
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

No caso de Sherlock, as "aventuras amorosas" duravam, em média, 40 minutos e ele não era exigente em relação às parceiras. "Ele ia com todas", diz Caetano. Esse comportamento não é regra entre os touros. Alguns têm hábitos mais "monogâmicos" e só aceitam montar em uma companheira específica. "Outros já querem duas ou três. Alguns têm preferência por vacas de uma cor ou de outra", diz o coletor.

Em média, um animal produz cerca de 500 doses de sêmen ao dia. Nesse aspecto, Sherlock também se destacava. Seus números variavam entre 900 e 1 mil doses diárias. E houve vezes em que o touro chegou a bater a marca de 1.500. Se cada uma fosse comercializada por cerca de R$ 50, com duas ou três ejaculações ele era capaz de fazer R$ 75 mil.

Quantidades mais altas eram comuns no início da semana. Via de regra, Sherlock fazia três coletas semanais, com intervalo de um dia entre cada uma. "Se, na segunda, ele produzia 1.500 doses, na quarta já caía para entre 900 a 1 mil. E na sexta ficava abaixo de 900", diz o coletor.

Tornado continua com a saga da sedução e arrisca nova subida em Goiaba. Desta vez ele está tinindo. Nessas horas, Caetano deve ficar atento e ser rápido, desviando o pênis do animal para uma vagina artificial, feita em material macio, aquecido a cerca de 37°C, de modo a simular o interior do órgão genital da vaca. No fundo, é instalado um coletor, onde o produto é depositado. Por se tratar de uma simulação, não pudemos assistir aos finalmentes.

O material coletado é então analisado e depois levado para ser envasado em palhetas, que são armazenadas em nitrogênio líquido, a -196ºC. Mais tarde, tudo será distribuído a fazendas do país e do mundo.

Tanque de nitrogênio com doses de sêmen de touro na Central ABS - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Tanque de nitrogênio com doses de sêmen de touro na Central ABS
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Só no celibato

Longe da vida na central, Sherlock leva a aposentadoria em inteira castidade. A tendência, pelo menos por enquanto, é que ele nunca mais venha a fazer nada relacionado a sexo, já que, pela idade (já tem mais de 10 anos), seu esperma tem pouco valor comercial. Será que ele não sente falta? "Animal não é igual a humano, que tem desejo sexual. Ele cruza porque a vaca está lá, do lado dele. Do contrário, ele não se preocupa com isso", afirma o veterinário Frederico Bessa, do Rancho da Matinha.

No local nascem, anualmente, cerca de 2 mil bezerros. O foco é a criação de animais para a produção de material genético para melhorar a qualidade dos rebanhos. O proprietário Luciano Borges Ribeiro, 74, começou a atuar nessa área há mais de 40 anos. Hoje, seu rancho tornou-se uma grife em matéria de reprodução bovina. Além de Sherlock, a fazenda de 1,2 mil hectares conta com outros moradores célebres como Corumbá, garrote mais valorizado da edição de 2019 da ExpoGenética de Uberaba, tendo sido avaliado em quase R$ 1,7 milhão.

Além dos touros, o rancho também cria vacas que podem ser tanto doadoras de material genético quanto atuarem como reprodutoras nos moldes tradicionais.

Ribeiro explica que a estrutura é complexa e que as vacas são como inquilinas no rancho. "Estando aqui, elas recebem comida, água, vacinas, casa, vermífugo. Então, elas precisam me dar retorno. Aquela que não me entrega um bezerro todo ano é caloteira", afirma.
Nesses casos, os animais que não cumprem com sua parte no trato acabam sendo vendidos para outros fins, incluindo abate.

Sherlock, por seu turno, está com a velhice garantida e permanecerá na propriedade até que venha a falecer, algum dia, de causas naturais.