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10 anos da Lei de Cotas: por que o discurso contra o sistema ainda é forte
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Nesta segunda-feira (29), o Brasil relembra os dez anos da aprovação, pelo Congresso, da Lei de Cotas. O mecanismo instituiu uma reserva mínima de 50% das vagas em instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas. Essas vagas passaram a ser preenchidas desde então por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à presença desses grupos na população.
Pelo projeto aprovado em 2012, a lei deveria ser revista uma década depois. O Congresso, porém, pretende adiar a discussão. Estamos, afinal, em ano eleitoral e em ano eleitoral, ao que parece, só se fala de outra coisa — inclusive em entrevistas e planos de governo dos principais candidatos a presidente.
Nos 40 minutos das entrevistas promovidas pelo Jornal Nacional com os postulantes ao Planalto, a questão não mereceu meio milésimo de atenção. Não houve tempo e espaço para os candidatos contarem o que pensam sobre o sistema ou como pretendem desarticular, se é que pretendem, a máquina de moer corpos negros no país.
A cota é um efetivo mecanismo de defesa contra a violência da exclusão e tem sido alvejada desde antes da aprovação da lei em 2012 — e segue sob ataque dez anos depois, de acordo com um estudo publicado, na última quarta-feira (24), pelo Observatório da Branquitude, uma organização social dedicada a analisar as estruturas de poder da identidade racial branca no país.
O levantamento apontou que desde a carta pública anticotas enviada ao Congresso em 2006, assinada por professores, pesquisadores e artistas — em sua maioria brancos —, a discussão tomou um outro rumo no país. Em 2022, 32 dos 104 signatários vivos foram contatados pela Folha de S.Paulo, que publicou uma reportagem com a manifestação de 11 deles. Eles disseram ter mudado de ideia. Dos procurados, oito pessoas não retornaram, nove não quiseram participar e apenas quatro mantinham a posição anticotas.
O estudo do Observatório mapeou a mudança no discurso da grande imprensa no período.
Essa mudança passa pela revisão de uma ideia, praticamente hegemônica nos grupos de poder, do mito da democracia racial, segundo o qual a mistura de raças serviria de antídoto ao racismo por supostamente engendrar uma sociedade pacífica, mestiça e antirracista por natureza. Essa visão tem sido desmistificada desde os anos 1950, mas ainda encontra ecos em manifestações de jornalistas, políticos e formadores de opinião.
Parte deles recorria a expressões como "discriminação às avessas" e "mérito substituído pela cor de pele" para espernear contra o mecanismo que abriu as portas das universidades para pessoas que durante anos só acessavam as universidades para trabalhar como empregados.
Ao contrário das premonições mais pessimistas, a lei de cotas se tornou ao longo dos anos uma política efetiva de inclusão mediante critérios socioeconômicos e raciais. Beneficiou sobretudo estudantes de baixa renda vindos de escolas públicas.
Ainda assim, 67 projetos de lei sobre o tema tramitaram no Congresso desde os anos 2000, segundo um levantamento a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros). Do total, 20 propostas são favoráveis às cotas e 31, contrárias (outros 16 abordam temas considerados laterais pela entidade).
Nas duas últimas legislaturas, 11 parlamentares apresentaram 13 projetos de lei que ainda estão em andamento na Câmara. De acordo com o mapeamento do Observatório, a maioria desses deputados é ligada às agendas de costumes e de moral religiosa. Parte deles votou a favor do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e a favor da PEC do Teto dos Gastos, da reforma trabalhista e contra a abertura de investigação contra o então presidente Michel Temer no caso JBS.
Ainda segundo o Observatório, seis parlamentares do universo anticotas estão cumprindo o primeiro mandato na Câmara; quatro são oriundos de famílias políticas tradicionais em suas regiões e apenas um se declarou "pardo" em seu registro no TSE. Duas mulheres integram o grupo.
Autor de um desses projetos anticotas, o deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) já afirmou que a atual política de inclusão fere a Constituição ao classificar pessoas com base em raça ou cor. Kataguiri é uma espécie de porta-voz da bancada da meritocracia.
"A raça, para esses grupos, não elucida o desequilíbrio nas relações de poder no Brasil que produz segregação racial. Logo, em alguma medida é possível banalizar a raça, relativizá-la mediante seu esvaziamento de sentido político. Ou, em uma perspectiva radical, negá-la peremptoriamente", diz o boletim do Observatório.
Em 2011, um ano antes da aprovação da lei de cotas, a porcentagem de alunos negros em universidades públicas era de 35%. Menos de dez anos depois, já era de 46%. Um dos fantasmas da cavalaria anticotas dizia que haveria um fosso no desempenho entre cotistas e não cotistas nas universidades. Esse mito caiu por terra. Estudos realizados na USP, UFMG e Unifesp mostraram que a diferença de desempenho é mínima e tem caído ao longo dos anos.
O vespeiro da revisão da lei deve ficar para outro momento.
Essa discussão cabe ao Congresso, mas será fortemente influenciada pelas posições do próximo presidente.
Nem todos fazem menção ao tema em seus programas de governo, mas já se posicionaram a respeito. Ciro Gomes (PDT) defende que, se houver revisão, não devem ser permitidos retrocessos. Um trecho dedicado a população negra em seu programa defende o acesso por contas a universidades públicas e também concursos públicos.
O ex-presidente Lula (PT), em seu programa, promete assegurar a "continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas". Ele afirmou, em resposta a um questionário do G1, que a lei é uma conquista dos governos do PT e enfrenta de forma combinada duas dimensões do problema da histórica exclusão educacional: desigualdade social e discriminação racial.
Simone Tebet (MDB) também é defensora do sistema.
Já Jair Bolsonaro (PL) suprimiu o assunto de seu programa de governo e também em suas manifestações públicas mais recentes. Na campanha de 2018, ele classificou as como sintoma de "coitadismo" e declarou ao Roda Viva, da TV Cultura, que não tinha dívida com pessoas negras porque não "escravizou ninguém". "É justo a minha filha ser cotista? O negro não é melhor do que eu, e nem eu sou melhor do que o negro", disse, na ocasião.
O negacionismo racional, segundo o Observatório da Branquitude, é o ponto que conecta os novos atores em cena no ambiente legislativo à base bolsonarista, além de membros do MBL (Movimento Brasil Livre), hoje virtualmente rompidos com o presidente. Ao menos neste ponto eles ainda concordam.
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