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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Pânico' tem 'disputa' de quem levanta mais a bola de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro durante entrevista ao Pânico, da Jovem Pan - Reprodução/Jovem Pan
O presidente Jair Bolsonaro durante entrevista ao Pânico, da Jovem Pan Imagem: Reprodução/Jovem Pan

Colunista do UOL

26/08/2022 15h55

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Rodrigo Constantino realizou um sonho de adolescente no começo da tarde desta sexta-feira (26).

Vestido com a camisa amarela da seleção, foi ao trabalho a caráter para bater uma bola com o ídolo, Jair Bolsonaro (PL).

O capitão da reserva voltava aos estúdios da Jovem Pan para participar, pela primeira vez desde que foi eleito presidente, do programa "Pânico". No humorístico, parecia em casa. E estava. Naquele programa ele se descobriu como atração de auditório, ganhou projeção nacional e chegou até onde chegou.

Em seu retorno, foi recebido por um imitador do Faustão que anunciou a presença dessa fera que começou a carreira como paraquedista e era pai do 01, do 02, do 03 e do 04. "Parece número da Tele Sena, bicho. Ô loco."

A mesa de entrevistas tinha entre os utensílios um sapinho verde de pelúcia e uma placa avisando que o local estava há três dias sem treta. Tinha também muita gargalhada.

A recepção era parte da conversa "amigável" de mais de duas horas anunciada pelo apresentador, Emílio Surita, o principal adversário de Constantino em um jogo no qual vencia quem massageasse mais e com mais volúpia o ego do convidado. E olha que a concorrência era dura.

Em seu habitat, Bolsonaro teve de sobra o tempo que faltou durante a entrevista ao "Jornal Nacional", no começo da semana.

Constantino mostrou sua arte na bajulação ao dar a Bolsonaro a chance de falar o que pensava sobre ditaduras de esquerda, a crise na Argentina, as incontinências verbais do ex-presidente Lula (PT), a importância do armamento para a segurança das "famílias de bem".

Bolsonaro pintou como quis o seu quadro particular no qual, segundo seus garranchos, o Brasil está às portas de um grande desastre que só ele poderia evitar. Afinal, as opções do "Sel Serce" (aqui acho que ele quis dizer "self-service") não são as melhores.

Nesse futuro incerto, igrejas podem ser fechadas, padres perseguidos, o Rio Grande do Sul se torna destino de argentinos famintos, comunistas e mulas sem cabeça andam de mãos dadas, supermercados são saqueados e seu filho 02 pode ser preso por divulgar fake news. (Em outro ato falho, ele chegou a dizer que a Polícia Federal quer atingir o amigo Luciano Hang por meio de empresários que fazem campanha anonimamente para ele. Talvez Alexandre de Moraes tenha interesse em saber como isso funciona.)

Em momento de descontração, Bolsonaro disse que o homem do campo não aguenta mais viver em um país com tantas terras reservadas para indígenas e quilombolas. O mapa do Brasil, segundo ele, já se assemelha a um corpo com catapora com tantas áreas de demarcação apontadas em vermelho. A festa chegaria a um ponto em que qualquer cacique poderá levar a sua oca para a frente do Palácio do Planalto e tomar o território para ele.

Sem mostrar quem, quando e onde, Bolsonaro se sentiu à vontade para dizer que na Inglaterra já se come carne apenas uma vez por semana. A fonte: um amigo. E que funcionários da Funai ganhavam mais dinheiro de ONGs para falar mal de pessoas como ele do que trabalhando. A fonte? Uma menina com quem conversou certa vez e revelou segredos de bastidores. Uau.

Em outro momento, Bolsonaro caminhou com a bola até onde quis, sem marcação, para dizer que a diferença entre refugiados ucranianos e venezuelanos era básica: só os primeiros chegavam ao país com seus gatos e cachorros. Os venezuelanos, não; os bichinhos, e isso foi o que o presidente do país ouviu dizer, eram comidos pelos vizinhos no caminho. O mesmo, disse Bolsonaro, aconteceu em Araraquara quando o prefeito da cidade decretou lockdown.

As evidências, assim como as supostas fraudes nas urnas, ficam para outro dia. A ideia ali era projetar o demônio em uma parede com as sombras das mãos e dizer, com todas as palavras, que não há nada ruim que não possa piorar. O adjetivo "ruim" foi autoconcedido.

Em outro momento, também instigado por Constantino, Bolsonaro ganhou um latifúndio temporal para trazer à baila a expressão "ativismo judicial" e sua teoria a respeito de uma suposta perseguição a policiais impedidos de fazer seu trabalho nas ruas — isso em um país onde os agentes do Estado mais prendem e matam no mundo. A conclusão do entrevistado era que os juízes trabalhados na impunidade tinham a mesma formação universitária do pessoal do PSOL. E para que serve a universidade se não formar militantes?, perguntou.

Na tabelinha mais arriscada do jogo, Constantino chegou a comparar uma ala da Polícia Federal que disse estar a serviço do STF à polícia de Adolf Hitler na Alemanha. A revolta era movida pelo pedido de investigação contra empresários bolsonaristas suspeitos de endossar um golpe de Estado em um grupo de WhatsApp. Era nítida a vontade de tirar do presidente uma declaração de guerra contra Moraes.

Coube a Constantino ler ao presidente, em primeira mão, a notícia de que o Tribunal Superior Eleitoral, sob o comando de Moraes, havia proibido o governo federal de veicular uma mensagem para o Dia da Independência com pegada evidente de propaganda eleitoral.

A conversa enveredou por longos minutos sobre o golpe na liberdade e no resgate promovido pelo capitão aos valores patrióticos representados pelo verde e o amarelo.

Em tom de brincadeira, Emílio chegou a se queixar da "conversa de comadre" da entrevista. Era só brincadeirinha. Na sequência, ele repetiu os trejeitos e as palavras usadas por William Bonner em suas perguntas ao presidente no telejornal global. Fez isso dizendo que lá, entre os seus, o presidente teria tempo para responder como queria sem interrupções.

Começava a ganhar ali com algumas jardas a preferência do capitão. Não teve pergunta que não contivesse um selo de alinhamento automático com o entrevistado.

Emílio usou o microfone para cravar que os estrangeiros querem a Amazônia para eles, um mantra do capitão. Disse também que Bolsonaro personalizou os desejos de mudança de país expressos desde as manifestações de 2013.

Em dado momento, uma câmera mostrou o alvoroço em frente ao prédio da Jovem Pan, onde uma claque se concentrava. O apresentador quis saber por que tanta manifestação de amor não aparecia nas pesquisas que colocam o adversário petista na liderança do jogo.

Alguém levantou a hipótese de que os institutos de pesquisa se fiavam em dados furados de um Censo demográfico desatualizado. Ah, bom.

Como se tentasse provar que a bajulação era um recurso ilimitado naquele estúdio, Emílio quis saber quais atributos Bolsonaro mais admirava em seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Bolsonaro então passou a contar intimidades dos momentos em que sentava para beber Tubaína com seu Posto Ipiranga.

Constantino trucou, mas não com uma pergunta. Quando uma bandeja com lanches foi servida aos presentes, Bolsonaro quis saber se não estava diante de pão com mortadela, uma referência ao apelido da esquerda.

Constantino correu para avisar que, se o ídolo quisesse, ele provaria antes a iguaria, para se certificar de que ele não seria envenenado.

Todos ali pareciam concordar com quase tudo. Passaram longos minutos atacando as urnas, a oposição, o Judiciário, a imprensa, os países europeus, os vizinhos da América Latina, a Rede Globo, em especial, e William Bonner, em particular.

Bolsonaro, em seu antigo figurino de atração televisiva, parecia liderar um exército que foge em retirada e no caminho vai queimando pontes e plantações. "Não existe amizade entre nações. Existe interesse", decretou.

Destaque para o momento em que debochou das dificuldades enfrentadas pelos franceses para lidar com a crise energética e a disparada dos preços no país.

Se for reeleito, talvez tenha ficado mais difícil conversar por telefone com os chefes de Estado atacados em rede nacional.

Nada que enrugasse a testa nem do convidado ou dos entrevistadores. Em cada frase Bolsonaro parecia cantarolar os versos de Roberto Carlos aos velhos amigos do programa: "Eu voltei, agora pra ficar, pois aqui, aqui é meu lugar".

Se toda brincadeira tem um fundo de verdade, o presidente demonstrou ter uma preocupação real quando questionou, em um dos intervalos da atração, se tinha alguma vaga de trabalho para ele no "Pânico".

Seria um reforço e tanto: como presidente, Bolsonaro já mostrou que ainda é uma ótima atração de auditório.

E, como programa de entrevista, o "Pânico" segue sendo uma grande piada de gosto duvidoso.