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Com empréstimo de D. Pedro 1º, Bolsonaro pode enfim mostrar um coração
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Nascer entre os plebeus tem suas vantagens a médio e longo prazo. O infortúnio aparente é um contrato vitalício com o perrengue, mas quando chega a hora da libitina e alguém decreta "descanse em paz", pode passar a régua: é dali para o caixão e de lá para os braços da eternidade.
Daquela linha em diante, D. Pedro e Pedrão, o camponês contemporâneo do imperador que foi enterrado em alguma curva do esquecimento às margens do século 19, tomam vias distintas na vida após a morte. Só o segundo poderá dizer que seu corpo cansado de guerra não é exposição.
Quem nasce monarca morre sem saber o que é isso. Mal a carne esfria e a vingança dos reles mortais, essa sim, vem a cavalo. Um Pedro está liberado para acertar as contas, em outros planos, do que fez e do que não fez em vida. E então pode acionar a mensagem de "não perturbe, estou de férias para sempre" nos aplicativos de mensagens de qualquer época.
O outro é submetido a uma jornada em que na antessala terá o peito aberto, as vísceras desentranhadas e um coração já combalido envolto em conservante para ser exposto ao público como um vidro de salsicha no balcão de um boteco. Parece macabro, e é.
De lá até o fim dos tempos, o órgão muscular oco e já sem o rubor da juventude pulsante e ativo entre veias e artérias será o lembrete de que entre a nobreza e a patuleia não existe um único selo ou marca d'água de distinção. Da farda para dentro somos todos vísceras, mas na hora do enterro uns são mais iguais que outros.
A história dos restos mortais de D. Pedro 1º é de cortar o coração, com o perdão do trocadilho.
Faz 50 anos que os despojos de seu corpo estão sepultados na cripta do Monumento à Independência, no Museu do Ipiranga, em São Paulo, a 8.189 km de distância do órgão de comando. O drama da metade exilada é o que Chico Buarque chamaria de revés de um parto.
Se a saudade dói latejada, por pouco o deputado Luiz Philippe de Bragança e Orleans (PL-SP) não reparou a maldade juntando o resto do corpo ao membro arrancado do pentavô. Talvez para evitar uma crise diplomática dupla, com a antiga metrópole e com o mundo dos mortos, o plano foi barrado pelo Itamaraty. (Não parece, mas na nova República ainda existe quem se empenhe em evitar que o Brasil se transforme numa versão atualizada da Macondo de Gabriel García Marquez).
Em seu testamento, o antigo imperador deixou muito claro o desejo de que seu coração deveria ser deixado em paz em seu pote até aqui de formol. O pote deveria ser guardado na cidade do Porto, em Portugal. Fim. Não era pedir muito. Principalmente para quem desferiu ordens para os subalternos a vida toda.
Desde então o antigo órgão vital reside em uma urna de madeira trancada na Igreja de Nossa Senhora da Lapa.
Só que o descanso dos nobres não é exatamente eterno, principalmente quando os mandatários da atualidade mantêm em seus aconselhamentos paralelos para assuntos sanitários e históricos influencers como a médica Nise Yamagushi.
Enquanto os contemporâneos de D. Pedro jazem em paz há quase dois séculos, seu coração de 224 anos precisou sair de casa e encarar uma viagem longa e cansativa para atender aos apelos dos comandantes da velha colônia e abrilhantar, com suas rugas expostas, a festa do bicentenário da Independência que ele um dia proclamou. Isso não se faz nem com um jovem adulto que já passou dos 30 e não aguenta mais de 3 horas na poltrona de um avião.
A apoteose é justificável. Esta pode ser a última festa com bolo, guaraná e muitos doces com pedidos de intervenção militar que o atual chefe de governo brasileiro pode chamar de sua em um 7 de Setembro.
Com canadas de realismo fantástico, a travessia do coração que já não bate mas perambula por aí com honras de chefe de Estado leva a um outro patamar a alegoria do conto infantil "A nova roupa do rei".
Perguntei a meu filho de nove anos se ele queria conferir as vestes líquidas do visitante ilustre e ele respondeu com uma cara de asco e uma sentença típica de quem vê mais do que os adultos nessas horas: o filho do rei está cru.
Mudamos de ideia.
Quis o roteirista dessa trama fúnebre que a víscera do nosso velho príncipe chegasse ao Brasil no dia em que um presidente com intenções imperiais era sabatinado no Jornal Nacional.
Torcida e retorcida, a entrevista se resumiu a uma operação de urgência na qual a junta médica investigou se existia mesmo algum resquício de coração debaixo de tanta pele maltratada pela vida.
Foi o que buscou saber a apresentadora Renata Vasconcellos ao perguntar ao paciente se ele conhecia as palavras compaixão, solidariedade ou remorso após passar quase dois anos sapateando em cima do mortos e dos familiares das vítimas da covid-19. O entrevistado apenas rosnou.
Quando Jair Bolsonaro foi eleito prometendo colocar a morte e o regozijo que ela produz no centro das decisões políticas nacionais, um amigo conhecedor das agruras da vida vaticinou: "Esses caras são todos autômatos. São incapazes de sentir. Só se constrangem quando viram motivo de piada".
No bicentenário da Independência, o homem de lata pode finalmente mostrar que tem coração. Ao menos até o dia 9 de setembro, quando o recipiente emprestado volta a Portugal.
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