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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pesquisa mostra como bomba da pandemia já estoura no colo de professores

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

23/08/2022 04h01

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Desde a volta às aulas presenciais, um amigo professor relata uma mudança no comportamento de seus alunos do sexto ano até o fim do ensino médio de um colégio particular no interior de São Paulo.

As mesmas atividades e avaliações que ele aplicava há três anos hoje não empolgam nem motivam. "O nível das notas foi lá embaixo", lamenta.

Parte da dificuldade é explicada pela agitação inusual dos jovens, que voltaram para a sala de aula, segundo ele, querendo extravasar sem limites tudo o que ficou represado no período mais agudo do isolamento.

"Parece que eles se esqueceram como é o comportamento em sala de aula. E a direção optou por não forçar muito, por ser mais maleável. Percebo um aumento das brincadeiras fora de hora, o desinteresse total por qualquer atividade, a defasagem em escrita e leitura."

Se antes os xingamentos e brincadeiras mais agressivas entre os alunos do ensino fundamental ocorriam de forma mais velada, longe da vista dos responsáveis, agora ela é ostensiva. São recorrentes nos corredores ou mesmo dentro da classe. Para o meu amigo professor, é como se houvesse uma urgência justamente de chocar e chamar a atenção.

Quem tem amigos professores sabe que casos do tipo estão longe de serem isolados. Antes mesmo da reabertura já era nítido que parte da hostilidade contra os professores já era alimentada pelos próprios pais de alunos.

Pois a bomba parece ter estourado.

Uma pesquisa recente realizada pela organização social Nova Escola e publicada na Folha de S.Paulo mostrou que 66% dos docentes brasileiros notam aumento da agressividade de seus alunos desde o fim do confinamento. Ao todo, 5.305 educadores de todas as regiões do país foram ouvidos.

Mais de 70% afirmam que já houve casos de violência por parte dos alunos nas escolas onde trabalham.

As razões para a hostilidade são diversas. Parte dos docentes atribui a agressividade ao aumento de doenças psicológicas devido ao isolamento (50,6%), à falta de socialização dos alunos durante a pandemia (40,5%), à vulnerabilidade familiar (46%) e à falta de ações disciplinares por parte da escola (24,7%).

A falta de tato social tem sido uma marca da retomada de velhas rotinas após dois anos de confinamento. Se tem adulto diplomado com dificuldade para se comportar na primeira fileira de um show de Roberto Carlos, imagina no fundão da sala, onde indivíduos ainda em formação estão aprendendo a viver em sociedade.

Como lembrou, em entrevista à Folha, a diretora da Nova Escola, Ana Ligia Scachetti, a pandemia teve consequências negativas para toda a sociedade, mas as crianças e os adolescentes sofreram mais justamente porque têm menos maturidade. "Não é que elas ficaram dois anos sem ir para a escola e perderam só conteúdos, elas perderam dois anos de convivência social em um ambiente que é fundamental para seu desenvolvimento."

A retomada não tem sido tranquila nem para os professores nem para quem tem filhos em idade escolar.

Um pouco por pena e outro tanto por não saber como gerenciar o tempo livre das crianças sem escola, muitos de nós relaxamos com os limites para consumo de internet e exposição a telas nos períodos mais tensos da crise sanitária. Migrar as atenções agora para as páginas de livros ficou complicado, para dizer o mínimo. Não dá para competir com o youtuber verborrágico e pensar em limites sem entrar em conflito e ouvir umas boas dos pequenos.

Pais de amigos contam que, se antes o tédio e a melancolia eram as principais preocupações em casa, agora a aflição é com o nível de agressividade dos meninos quando se encontram. E eles gritam cada vez mais. Xingam cada vez mais. Choram cada vez mais. Dá para imaginar como tudo isso tem chegado aos pátios da escola.

Dias atrás, uma amiga da área de saúde foi até uma escola pública de seu município e saiu de lá assustada com a forma com que foi recebida pelos alunos. Se antes havia acolhimento às palestras e conversas sobre tratamentos, higiene e saúde básica, agora é comum ouvir respostas atravessadas, com risadas ao fundo, de jovens desafiadores. Nem sempre foi assim.

Naquela escola, onde o uso de máscaras ainda é opcional, ela notou que parte dos estudantes ainda têm dificuldade para retirar o acessório em público. São justamente os alunos que se sentem fora do padrão e que mais sofrem bullying dos colegas.

Uma aluna entrou em choro convulsivo ao tirar o equipamento para fazer um tratamento dentário, que hoje precisa ser realizado em um canto escondido da escola, longe da vista dos amigos. Ela dizia que era muito feia e não queria ser vista.

"Dá pra notar como muitos perderam o tato da convivência", relata.

A profissional conta que é notável como o aumento da pobreza no país virou uma marca no ambiente escolar. "É nítida a falta de perspectiva. É como se todo mundo ali soubesse que não vai ter emprego ao fim do curso. Então falam: 'Dane-se, é tudo uma grande várzea'."

Lidar com tudo isso é o desafio mais urgente da retomada.

Como lembrou Scachetti em sua entrevista, todos os problemas sociais desembocam na escola, mas a escola não pode resolvê-los sozinha.

Levar essa lição para casa pode ser o começo de uma reconstrução que passa, mas não se limita apenas, à sala de aula.