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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Não tem marmita': quando a fome vira oportunidade de controle

Homem diz que não fara mais doação de marmita a eleitora de Lula - Reprodução de vídeo
Homem diz que não fara mais doação de marmita a eleitora de Lula Imagem: Reprodução de vídeo

Colunista do UOL

13/09/2022 04h01

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Um apoiador de Jair Bolsonaro que distribuía marmitas em um bairro pobre de Itapeva, no interior de São Paulo, virou notícia após constranger uma diarista que pretende votar no ex-presidente Lula (PT) nas eleições de outubro.

"É a última marmita que vem pra senhora", diz o mau samaritano, tirando a eleitora rebelde da órbita de sua solidariedade.

Para ganhar o peixe, não é preciso pescar, e sim merecer. Como não "mereceu", ela que pedisse comida, dali em diante, para seu candidato. Foi o que sentenciou o homem em um vídeo gravado, distribuído e vazado entre amigos.

O episódio viralizou e causou revolta. O embaraço foi tão grande que ele precisou gravar outro vídeo pedindo desculpas.

Não vou entrar no mérito da exposição, nem da mulher nem de seu algoz. Mas desconfio que a história deu forma e rosto a uma mazela coletiva que não pode ser fulanizada, sob o risco de lançar fumaça sobre uma estrutura social perversa, antiga e baseada numa relação desigual e histórica de forças.

O tal empresário fugia ao estereótipo dos malvados favoritos que, sob Bolsonaro, parecem dispostos apenas a distribuir bordoadas e tiros contra quem pensa (e vota) diferente do que seu mestre mandou.

O autor do vídeo dizia estar naquele bairro por uma boa razão: levar alimentos para quem não tem o que comer. Tem motivo mais nobre?

A resposta é um grande "veja bem". Naquela quebrada, entre a suposta boa vontade e a boa ação habitava uma lógica cruel que vê na vulnerabilidade um processo de controle.

Não existe almoço grátis, repetem à exaustão os sábios da contemporaneidade meritocrática.

Então, em troca da doação de um prato que deveria ser direito básico indiscutível, a gratidão se manifesta — ou deveria se manifestar, pela lógica de quem doa — em forma de cadeado.

Parece, e é, a atualização de um velho acordo econômico em que o proprietário dos corpos subjugados convence e é convencido de que trabalho gratuito em troca de cama, roupa e comida é um grande negócio para todas as partes.

Nas páginas da História, só uma das partes virou nome de rua. Em um país atrasado pela miséria, o dinheiro garante tudo, inclusive certificado de bom cidadão.

Na famosa troca de mensagens entre empresários bolsonaristas, em que os ditos patriotas defendiam abertamente um golpe de Estado pelo WhatsApp, houve quem sugerisse pagar um bônus extra aos funcionários que votassem conforme seus interesses. Um dos presentes alertou que a estratégia era complicada e poderia configurar compra de votos.

A conversa, então, mudou de rumo. Ninguém ali tem medo do julgamento final, mas arrumar encrenca a essa altura com os tribunais terrenos pode sair caro e ninguém estava a fim de rasgar dinheiro.

O arcabouço de um país fundado na escravidão faz com que o espírito insepulto do senhor de escravo venha à superfície toda vez que alguém vê em um corpo vulnerável uma oportunidade de domínio. Da mente, da consciência e do voto. Quando não do corpo.

Aquele homem que condicionou a doação de uma marmita a um voto não é uma aberração. É uma multidão consciente que em outros tempos já espalhava sem pudor os seus lamentos de que, graças às políticas de distribuição de renda implementadas nos tempos do governo que hoje deplora, estava cada vez mais difícil encontrar gente disposta a limpar suas privadas por um trocado ou um prato de comida.

Era o mesmo sinhôzinho que esperneava ao ver o aeroporto transformado em rodoviária toda vez que viajava com a família. Até a empregada ia para a Disney. Uma festa danada.

A marmita sonegada é a versão para o grupo de WhatsApp de uma velha e conhecida corrente de e-mail que, nas duas últimas décadas, conclamava os maus samaritanos a tirarem seus porteiros eleitores do PT da lista de beneficiários de caixinhas e panetones no fim do ano. O argumento era o mesmo: manda o seu Severino pedir a iguaria para o Lula.

A mulher humilhada na porta de casa não precisaria passar por nenhum constrangimento se houvesse um consenso básico neste país de que é direito dela, e de qualquer cidadão, ter acesso a três refeições diárias sem precisar ser achacada para isso.

A garantia desse acesso é dever do Estado, não uma lacuna a ser preenchida por barganha individual e mesquinha. (Lembra quando um certo deputado viajou para um país devastado pela guerra e voltou feliz por saber que as mulheres de lá eram lindas e "fáceis porque são pobres"? Pois então. Um país devastado e vulnerável pela fome é tudo o que a turma quer para seguir balançando as chaves e colocar seus desejos em dia. Se o passaporte for um prato de comida, o sonho saiu barato).

Quando assumiu a Presidência e anunciou o objetivo de "despetizar" a administração pública, uma das primeiras medidas de Jair Bolsonaro, o ídolo da turma, foi desmontar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. O órgão era responsável por formular e monitorar políticas públicas de segurança alimentar com ampla participação da sociedade.

O desmonte equivalia a tirar uma pá da hélice de um helicóptero em pleno voo. Hoje Bolsonaro demonstra dificuldade em entender por que o combate à fome no Brasil é um giro em falso, condicionado ao acesso a um benefício individual cheio de gargalos e desenhos mal formatados e só turbinado em ano eleitoral porque seus idealizadores pensam que pobreza é ainda um grande reserva de votos e trabalho mal remunerado.

Não deixa de ser irônico que o bolsonarista do vídeo responda a uma série de processos e seja acusado de receber indevidamente o Auxílio Brasil, programa remodelado e pintado de verde e amarelo numa estratégia, até aqui falha, de ganhar os votos de quem mais sofreu no atual governo.

Com a repercussão do caso, uma onda de solidariedade em torno da mulher tomou forma. Ela recebeu mensagens de solidariedade pelas redes e deverá receber uma série de doações pelos próximos meses. Até o tão difamado MST resolveu ajudar.

Há quem diga que a mulher, no fim, se deu bem. Spoiler: ninguém se dá bem em um país onde a vulnerabilidade é ainda um campo onde qualquer um pode bater à porta exigindo o que bem quiser em troca de comida. É para isso que precisamos defender um Estado cada vez mais ativo e responsável por instituir políticas distributivas sérias e viabilizadas pelo princípio da impessoalidade.

Enquanto houver lacunas, uma multidão seguirá disfarçada de bons samaritanos para espalhar apenas a palavra do Senhor, o senhor de escravos.