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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Morte de segurança de ACM Neto mostra como falhamos em debater branquitude

Ex-prefeito de Salvador ACM Neto (União Brasil) é candidato ao governo da Bahia - Reprodução/TV Globo
Ex-prefeito de Salvador ACM Neto (União Brasil) é candidato ao governo da Bahia Imagem: Reprodução/TV Globo

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Em um hotel de Itajuípe, no interior baiano, enquanto o candidato ao governo da Bahia ACM Neto (União Brasil) calibrava o bronzeamento para posar na TV como um homem do povo, em um estado onde 80% das pessoas são negras e poucas delas estão nos postos de comando, um dos seguranças de sua campanha, o subtenente Alberto Alves dos Santos, foi morto na terça-feira (27) ao ser confundido pela polícia com um criminoso em fuga. O "suspeito" era um homem negro.

O episódio diz mais sobre o racismo estrutural no país do que supõe a auto-declaração de candidatos.

"Fica explícito que enquanto há um nítido oportunismo do candidato ao se declarar pardo, muito próxima a ele a realidade se impõe. No Brasil a cor da pele para a população negra não é uma mera pertença distorcida. Ela é definidora de garantia de vidas e acesso a direitos. Poder emular uma negritude artificial é um privilégio da branquitude. Mas, para pessoas negras, a realidade é outra e esse caso é a prova disso", diz o sociólogo Thales Vieira, coordenador executivo do coletivo Observatório da Branquitude.

Para ele, em vez de o candidato tentar se declarar pardo, "deveria estar preocupado em formular respostas para reduzir as taxas exorbitantes de mortalidade dessa população no seu estado. "Esse caso demonstra que ao menos no estado mais negro do Brasil o racismo deveria estar na ordem do dia nos debates eleitorais. O atual governo não foi capaz de produzir políticas públicas de segurança de proteção a vida e não me parece que essa pauta seja prioritária dos candidatos mais bem colocados dessa eleição", afirma.

A tragédia pessoal escancara uma tragédia coletiva e histórica, construída na base do genocídio e do encarceramento em massa da população negra, e que não passou nem perto de ser abordada como deveria ao longo da campanha.

Basta ver quem são e de onde vêm a grande maioria das candidaturas e apoiadores das campanhas prestes a serem declaradas vitoriosas, a partir das eleições de domingo (2), num fenômeno que já nasce como filme repetido.

Como mostrou a repórter Camila Rodrigues da Silva, em reportagem recente publicada no UOL, propostas como a ampliação do sistema de cotas e mecanismos de combate ao racismo até aparecem genericamente no programa de três dos quatro presidenciáveis à frente nas pesquisas de intenção de voto —o tema foi tratado durante o debate da TV Globo de quinta-feira (29) pelo ex-presidente Lula (PT). Por ironia, os dois únicos candidatos declarados negros da disputa mal pontuam nos levantamentos: Vera Lúcia (PSTU) e Léo Péricles (UP).

Se as propostas são genéricas, nenhuma das candidaturas representa melhor o empoderamento da branquitude, porém, do que a de Jair Bolsonaro (PL).

O levantamento mostrou que seu plano de governo não traz sequer as palavras "negro", "preto", "pardo" ou "racismo". Nada que soe estranho para quem manteve por tanto tempo um ministro da Educação que dizia odiar termos que se referem a minorias.

Uma de suas raras propostas só aparece no eixo "sustentabilidade ambiental", na qual o capitão sugere que territórios quilombolas (e também indígenas) deveriam promover o chamado "etnoturismo" por meio da comercialização de artesanatos, do "extrativismo sustentável com o necessário manejo florestal" e de "criadouros, pecuária, agricultura e mineração".

Em outras palavras: incentivar a produção de miçanga é uma das poucas ideias dedicadas pelo presidente ao alvo preferencial da violência em um país onde pessoas negras têm 2,6 vezes mais chances de serem assassinadas.

A opinião de Bolsonaro sobre sistemas de cotas fica subentendida pela supressão. Em 2018, o então candidato classificava o sistema como "coitadismo" e dizia ser injusto que pessoas como ele arcassem com uma reparação histórica sem ter escravizado ninguém.

(Na mesma campanha, ele calculou o peso de pessoas quilombolas em arrobas e disse que elas não serviam sequer para procriar.)

Entender como Bolsonaro foi eleito em um país onde 57% da população se declara negra ou parda exige uma reflexão profunda sobre como a branquitude está profundamente embrenhada nas estruturas de poder — e não só na autodeclaração de candidatos.

Um levantamento recente do Observatório da Branquitude mostrou como a associação do bolsonarismo com as Forças Armadas e o agronegócio é, antes de tudo, um pacto com a branquitude — um pacto que tem no discurso anticotas um ponto nevrálgico.

Segundo o relatório, 98% dos oficiais-generais da ativa nas três Forças Armadas são brancos, e nenhum proprietário de estabelecimentos rurais acima de 10 mil hectares em estados como Ceará, Rio Grande do Norte, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul se declara negro.

O apoio é uma questão de identificação, já que 70% dos financiadores da campanha à reeleição são empresários do agronegócio —entre eles, contribuintes envolvidos em exploração de trabalhadores em situação análoga à escravidão e infrações ambientais.

Em ambos os grupos predomina a ideia de que riqueza e/ou ascensão é questão de mérito e não precisa de ação afirmativa alguma.

O estudo mostra que o segmento rural tem significativa representação no Congresso e sua bancada oferece amplo apoio ao atual presidente e a pautas como a liberação de armas. Uma simples observação sobre quem lucra e quem morre com tanta venda de armas ajuda a entender o problema.

O Observatório lembra ainda: eram todos brancos os empresários investigados por defender, em um grupo de WhatsApp, um golpe de Estado caso Bolsonaro perdesse a eleição em outubro.

"As Forças Armadas, o agronegócio e o empresariado bolsonarista manifestam, em suas tomadas de decisão e em seus posicionamentos a radicalização da defesa de privilégios e benesses dedicadas aos brancos no curso da história do país", diz o relatório.

Em um país onde só cresce a percepção sobre o racismo, segundo o Datafolha, as eleições deveriam ser um momento-chave para colocar a discussão no centro de qualquer debate. Estamos (ainda) longe disso.

Deixar isso para depois equivale a disfarçar os privilégios da branquitude fingindo solidariedade em sessões de bronzeamento artificial.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que o texto informou, ACM Neto se declara pardo, não negro. E a cidade citada não fica no litoral, mas no interior.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL