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Punido, vereador gaúcho personaliza onda de ódio ao Nordeste após eleição

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Os ataques contra a população da Bahia, proferidos por um vereador de Caxias do Sul (RS), são o ápice de uma onda de impropérios detonados contra nordestinos desde o fim das últimas eleições.
Sandro Fantinel usou a tribuna da Câmara Municipal da segunda maior cidade do estado para ironizar a repercussão do resgate de pessoas em situação análoga à escravidão, em um alojamento da vizinha Bento Gonçalves. Boa parte das vítimas são do Nordeste, e os empregadores, donos de uma empresa que terceirizava serviços na colheita de uva para grandes vinícolas e granjas da região.
Fantinel foi expulso de seu partido, o Patriota, após sugerir aos empresários da Serra Gaúcha que "não contratem mais aquela gente lá de cima" e sim argentinos, que seriam "limpos, trabalhadores e corretos".
"Nunca tivemos problema com um grupo de argentinos. Agora, com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que se fosse ter esse tipo de problema. E que isso sirva de lição. Que vocês deixem de lado esse povo que está acostumado com Carnaval e festa", disse o vereador.
O corte racista da frase, que associa moradores e elementos culturais (como o tambor) do estado com a maior população negra do país à indisposição ao trabalho, em contraste com o país vizinho de maioria branca, é escancarado. O ódio a uma região que votou em peso contra Bolsonaro, do qual o parlamentar era um "soldado", também.
O vereador ignora, ou finge ignorar, que seu alvo é um estado conhecido por ser um dos principais polos petroquímicos, industriais e automobilístico do país. E também pela produção de cacau, feijão, milho e cana-de-açúcar que alimentam um país inteiro.
A fala, além do mais, é mentirosa: trabalhadores argentinos também já foram aliciados em situação parecida a dos nordestinos resgatados em fins de fevereiro. Não há indícios de que agradeceram por terem a liberdade vigiada em um ambiente de tortura e extorsão.
Pouca vezes foi tão didático entender como funciona a mentalidade escravista no Brasil. De modo nem sempre tão escancarado, ela reduz a subjetividade das vítimas, como se elas não tivessem alma ou grandes propósitos no mundo a não ser agradecer pela precária oportunidade de trabalho, oferecida pelos donos da "casa-grande".
Fantinel está longe de ser o único representante da turma.
Em novembro do ano passado, logo depois das eleições, estudantes de um colégio de elite de Valinhos, no interior de São Paulo, usaram um grupo de WhatsApp para promover mensagens de ódio contra nordestinos. Defendiam que eles morressem de sede e manifestaram o desejo de "reescravizar" a região. Tudo isso em meio a figurinhas com a suástica e culto a figuras como Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Dá para imaginar o que aqueles adolescentes ouviam em casa, dos pais, enquanto regavam a semente de ódio.
Na mesma época, muita gente inconformada com a vitória de Lula (PT) nas urnas, inclusive uma advogada de Uberlândia (MG), foi às redes defender que o restante do país não deveria viajar para as áreas turísticas do Nordeste para "não dar dinheiro" a quem não obedece suas ordens, nem mesmo durante a eleição. Tal como o vereador de Caxias, conclamavam os empresários do Sul a não contratar mão de obra vinda da região.
Mal o governo Lula havia iniciado e a culpa por qualquer soluço na economia estava definida: a culpa de quem decidiu em peso não dar um segundo mandato a um presidente que desancava operações contra trabalho escravo, referia-se aos governadores nordestinos como "paraíbas", chamava seus conterrâneos de "pau de arara" e "cabeçudos" e dizia, em seus tempos de deputado, que, "se você for no Nordeste, não consegue uma pessoa para trabalhar na tua casa".
"O voto do idiota é comprado com Bolsa Família", dizia o parlamentar, que passou três décadas no Congresso sem aprovar um único projeto de relevância, além da engorda dos bolsos dele e de seus familiares.
Críticas a programas sociais, queixas de falta de mão de obra, desprezo por nordestinos e defesa da precarização do trabalho. Lembra alguma coisa?
Discursos do tipo sempre rondam as mesas das melhores famílias do Sul e Sudeste, geralmente compostas por filhos e netos de imigrantes europeus empobrecidos que receberam apoio oficial para substituir mão de obra escravizada no país, e que vivem agora cortando as escadas de qualquer discussão sobre ascensão social.
A novidade é que não se constrangem em destilar seu ódio de classe nas tribunas. Os soldados do bolsonarismo têm um capitão em quem se inspirar.
Não faz muito tempo, um deputado federal eleito pelo Rio Grande do Sul viajou para a Bahia e gravou um vídeo desancando o estado, associando um alegado desleixo na limpeza das cidades à visão local sobre política — na lógica dele, quanto mais pobre a população, mais votos daria a quem supostamente criava as condições para que ela vivesse na pobreza. Não faz o menor sentido, mas inteligência não é o forte da turma.
Em uma fala luminosa no telejornal "Bahia Meio Dia", a jornalista Jessica Senra disse que a cultura em seu estado até incluía talento com tambores, mas ia além. "Nossa cultura é não se deitar para autoritários, tiranos e senhores de engenho."
Ela fez bem em lembrar um artigo recente do escritor Luiz Ruffato, para quem existe uma diferença importante entre entre ignorância, que afeta quem não acessa o conhecimento e a informação, e a burrice, que acomete quem tem dificuldade de compreender a realidade por teimosia e arrogância.
Não é difícil saber quem é quem.
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